Darwin e Deus https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas Mon, 15 Nov 2021 14:20:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Projeto da USP aborda evolução humana com enfoque plural e inclusivo https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/projeto-da-usp-aborda-evolucao-humana-com-enfoque-plural-e-inclusivo/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2021/02/27/projeto-da-usp-aborda-evolucao-humana-com-enfoque-plural-e-inclusivo/#respond Sat, 27 Feb 2021 13:46:12 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/EVOLUÇÃO-PARA-TODES-CIENTISTAS-1-320x213.png https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=6527 É um imenso prazer chamar a atenção do leitor do blog para um projeto de divulgação científica muito interessante criado pelo pessoal do LAAAE-USP (Laboratório de Arqueologia, Antropologia Ambiental e Evolutiva da USP). Trata-se do Evolução para Todes, sob a batuta de três pós-graduandas do laboratório: Mariana Inglez, Lisiane Müller e Eliane Chim.

O trio chama a atenção para um problema óbvio da comunidade acadêmica e de divulgação científica brasileira (e mundial): somos muito pouco diversos. A participação e a representação de profissionais que não sejam brancos e do sexo masculino nessas áreas ainda são baixíssimas. E isso talvez seja especialmente grave em áreas como a arqueologia e paleoantropologia, que possuem uma relação histórica com o colonialismo e o racismo — a qual, óbvio, precisa ser discutida e criticada. A grande ironia, claro, é que a grande maioria dos eventos cruciais da evolução humana ocorreram na África e em outras regiões distantes da Europa, envolvendo populações que hoje classificaríamos como negras.

Por isso, fica aqui o convite para conhecer o trabalho competente das moças. Você pode acessar o Instagram do projeto, por exemplo. E, para quem tem pequenos cientistas em casa, está sendo produzida uma fofíssima série de vídeos sobre os temas aos quais o grupo se dedica. Você pode conferir os dois primeiros aqui:

E aqui:

(Quem conhece a Cidade Universitária na capital paulista certamente reconhecerá o prédio do Instituto de Biociências da USP logo no primeiro quadro do segundo vídeo. Bateu até uma saudade.)

Parabéns pela iniciativa e longa vida ao projeto!

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A Origem das Histórias: evolução humana, ficção, fantasia e ciência https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2019/09/11/a-origem-das-historias-evolucao-humana-ficcao-fantasia-e-ciencia/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2019/09/11/a-origem-das-historias-evolucao-humana-ficcao-fantasia-e-ciencia/#respond Wed, 11 Sep 2019 13:01:57 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Raven_Rattle_19th_century_05.588.7292-320x213.jpg https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=5910 Seres humanos, em todas as épocas e lugares, são apaixonados por contar histórias imaginadas, tanto as “realistas” quanto as que envolvem fantasia ou ficção científica. Como diabos isso aconteceu conosco ao longo da evolução, e como ciência e ficção podem dialogar? Tentei abordar brevemente esses temas numa palestra que proferi durante a 23a. Jornada de Letras da UFSCar, aqui em São Carlos (SP). Abaixo, temos a íntegra do áudio da minha fala, em formato de vídeo do YouTube (é, eu sei que é estranho).

Abaixo, os trechos de livros lidos durante a palestra.

J.R.R. Tolkien, Sobre Estórias de Fadas (a tradução é minha, deve sair no ano que vem):

“A mente encarnada, a língua e a estória são, no nosso mundo, coevas. A mente humana, agraciada com os poderes da generalização e da abstração, vê não apenas grama-verde, discriminando-a de outras coisas (e achando-a bela de contemplar), mas vê que é verde bem como é grama. Mas quão poderosa, quão estimulante para a própria faculdade que a produziu, foi a invenção do adjetivo: nenhum feitiço ou encantamento em Feéria é mais potente. E isso não é surpreendente: tais encantamentos poderiam, de fato, ser considerados apenas outra visão dos adjetivos, uma classe de palavras numa gramática mítica. A mente que pensou em leve, pesado, cinza, amarelo, parado, veloz também concebeu magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria chumbo cinza em ouro amarelo, e a pedra parada em água veloz. Se podia fazer uma coisa, podia fazer a outra: inevitavelmente fez ambas. Quando conseguimos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, temos já um poder encantatório – em certo plano; e o desejo de empunhar esse poder no mundo externo às nossas mentes desperta.”

Sidarta Ribeiro, O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho:

“Os mitos sobre a origem do mundo, muito recentes na evolução da espécie, derivam da expansão sem precedentes da nossa capacidade de representar entidades reais e imaginárias, humanas e feras, sincretizadas aos nossos ancestrais. Foi quase inevitável a mistura com outros seres, plantas e acidentes geográficos, pois durante o sonho nada impede que essas representações se fundam. Naturalmente essa fabulosa fauna mental se apresentou em inúmeras manhãs à consciência vígil de nossos ancestrais boquiabertos. A consequência foi a ampla prevalência do zoomorfismo na cultura humana. Desde que somos gente, somos bicho.”

Edward Osborne Wilson, O Futuro da Vida:

“Legamos a vocês as selvas sintéticas do Havaí e a vegetação rasteira onde antes vicejava a prodigiosa Floresta Amazônica, junto com alguns remanescentes de habitats selvagens aqui e ali, que escolhemos não destroçar. O seu desafio é criar novos tipos de plantas e animais por meio da engenharia genética e, de algum modo, encaixá-los juntos em ecossistemas artificiais de vida livre. Entendemos que um feito desses pode se mostrar impossível. Estamos certos de que, para muitos de vocês, o mero fato de pensar nisso provocará repugnância. Boa sorte. E, se forem em frente e tiverem sucesso em tal empreitada, lamentamos que aquilo que manufaturarem nunca poderá ser tão satisfatório quanto a criação original. Aceitem nossas desculpas e esta biblioteca audiovisual que ilustra o mundo maravilhoso que costumava existir.”

Robert Sapolsky, Memórias de Um Primata:

“E a peste levou Saul, que morreu em meus braços, como descrevi numa história anterior.
E a peste levou Davi.
E Daniel.
E Gideão.
E Absalão.
E a peste levou Manassés, que morreu na frente de um grupo de funcionários do hotel, que gargalharam ao vê-lo sofrer.
E a peste levou Jessé.
E Jônatas.
E Sem.
E Adão.
E a peste levou meu Benjamim.”

Reinaldo José Lopes, 1499: O Brasil Antes de Cabral:

“Acho impossível que um habitante das primeiras décadas do século 21 tenha ficado imune à atual onda de narrativas de ficção (nas livrarias, no cinema, na TV, na internet) que andam nos soterrando com imagens “pós-fim do mundo”. São quadrinhos que viram série de televisão, best-sellers para adolescentes que viram filme e incontáveis outras variações do mesmo tema: Jogos Vorazes, The Walking Dead, Divergente e até a ressurreição de Mad Max (sou capaz de apostar que você consegue ao menos dobrar o número de itens dessa lista sem muito esforço). De repente, a chamada distopia pós-apocalíptica – ou seja, a ideia de que, para todos os efeitos, o mundo como o conhecíamos acabou, e os sobreviventes da catástrofe vivem num ambiente assustador e brutalmente transformado – parece ter ganhado o status de gênero narrativo dominante de nosso tempo. O que direi agora pode soar como maluquice, mas esse tipo de cenário talvez seja um excelente jeito de entender, em termos imaginativos, o significado do “fim da pré-história” (coloque muitas aspas aí, é claro) para os povos nativos das Américas e, em particular, do Brasil.

Não se trata apenas de frase de efeito. Como este é o momento de amarrar as pontas da nossa história, peço que você recorde um ponto que abordamos nas distantes primeiras páginas da introdução deste livro: a ideia, ainda muito influente, de que as sociedades nativas do futuro Brasil eram simples, pouco populosas, móveis, isoladas e presas num “eterno presente” no qual nunca havia mudanças significativas. Esse retrato poderia até fazer certo sentido se a intenção fosse descrever alguns dos grupos que travaram contato com exploradores ocidentais na Amazônia entre o fim do século 19 e os anos 1970 do século 20, mas ainda assim ele é tremendamente enganoso porque, no fundo, refere-se a sobreviventes de um apocalipse em miniatura. Nesse filme de época, infelizmente, os zumbis devoradores de gente são os brasileiros de origem europeia, enquanto o papel das tribos amazônicas não é muito diferente do dos mocinhos de The Walking Dead; vale dizer, o de gente tentando manter algum simulacro do funcionamento original de sua sociedade quando as estruturas políticas forjadas por seus ancestrais e a maior parte da população à qual pertenciam já tinham virado fumaça.”

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Íntegra da palestra A Ciência da Terra-média no Pint of Science https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2019/06/03/integra-da-palestra-a-ciencia-da-terra-media-no-pint-of-science/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2019/06/03/integra-da-palestra-a-ciencia-da-terra-media-no-pint-of-science/#respond Mon, 03 Jun 2019 14:42:50 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/a-gollum-game-is-coming-320x213.jpeg https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=5780 Tem ciência na Terra-média? Ô se tem! Dos alfabetos com precisão científica criados por Tolkien até a antropologia dos hobbits e a biologia dos dragões, dá pra abordar o mundo de Arda pelo prisma da ciência, como explico nesta palestra proferida na Taverna Medieval, em São Paulo, durante o sensacional evento de divulgação científica em botecos, o Pint of Science. Confiram o vídeo (que na verdade é só áudio, mas tá valendo, né?).

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Um guia para entender as civilizações perdidas da Amazônia https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/um-guia-para-entender-as-civilizacoes-perdidas-da-amazonia/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/um-guia-para-entender-as-civilizacoes-perdidas-da-amazonia/#respond Wed, 20 Jun 2018 18:28:16 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2017/09/xingucity-180x135.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=5189 Pois é, “civilizações”, no plural. Arqueólogos do Brasil e do exterior estão mostrando que o passado da Amazônia foi muito mais complexo do que se imaginava até poucas décadas atrás. Escrevi um resumão desses achados fascinantes para a revista Aventuras na Históriaque também serve de aperitivo para meu livro “1499, o Brasil Antes de Cabral” (disponível na Livraria da Folhaentre outros lugares, por um precinho camarada). Confira a reportagem abaixo — e, se possível, o livro também!

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O paulista Antônio Pires de Campos era um sujeito esquisito: um bandeirante que sabia escrever, e até bem. Em 1723, ele pôs no papel um relato sobre suas aventuras em Mato Grosso, nas quais chegou até as cabeceiras do rio Tapajós, incluindo uma passagem deslumbrada sobre a região que apelidara de “Reino dos Parecis”. Vale a pena lê-la:

“É esta gente em tanta quantidade, que se não podem numerar as suas povoações ou aldeias, muitas vezes em um dia de marcha se lhe passam dez e doze aldeias (…) estes todos vivem de suas lavouras, no que são incansáveis, e as lavouras em que mais se fundam são mandiocas, algum milho e feijão, batatas, muitos ananases, e singulares em admirável ordem plantados (…) muito asseados e perfeitos em tudo que até as suas estradas fazem muito direitas e largas, e as conservam tão limpas e consertadas que se lhe não achará nem uma folha.”

Em 27 de março deste ano, arqueólogos do Brasil e do Reino Unido publicaram dados na revista científica Nature Communications mostrando que não, Pires de Campos não tinha tomado algumas cachaças a mais quando enxergou esse cenário de organização agrícola quase alemã em plena Amazônia. Imagens de satélite e escavações permitiram que os pesquisadores identificassem 81 sítios arqueológicos até então desconhecidos no Alto Tapajós (um pouquinho ao norte da região visitada pelo bandeirante). As aldeias dessa região, provavelmente construídas alguns séculos antes do contato com os europeus, abrigavam uma população combinada que ficaria entre 500 mil e 1 milhão de habitantes, calculam eles.

Os povoamentos, que chegavam a ocupar até 20 hectares (cada hectare corresponde à área de um campo de futebol) eram circulares, cercados por valas e diques defensivos, possivelmente completados com muralhas de troncos de madeira. Monumentos feitos com montes artificiais de terra (chamados de mounds, em inglês) estavam presentes em várias das aldeias, assim como estradas.

As descobertas são importantes, mas não passam de uma pecinha num quebra-cabeças que está ficando cada vez mais coerente conforme as pesquisas arqueológicas se intensificam na Amazônia. “O mais importante é que os nossos dados fecham um buraco no mapa”, diz Jonas Gregorio de Souza, pesquisador brasileiro da Universidade de Exeter (Reino Unido) que é um dos autores do novo estudo. De fato, super-aldeias que mais pareciam cidades foram identificadas na década passada a leste dos novos achados, no Alto Xingu; a oeste, no Acre, já foram achados mais de 500 geoglifos – desenhos geométricos no chão que, ao que tudo indica, são os restos de centenas de centros cerimoniais pré-colombianos.

Repare que todos os complexos arqueológicos que citei até agora ficam na periferia sul da região amazônica. Há achados igualmente intrigantes na calha principal do rio Amazonas e de seus afluentes, em lugares como a ilha de Marajó, a região de Santarém (PA) e a Amazônia Central, perto de Manaus e do célebre “encontro das águas” dos rios Negro e Solimões. Embora a presença de amazonas de verdade (as mulheres guerreiras da mitologia grega, que extirpavam um de seus seios para usar melhor o arco e só se encontravam com homens para fins reprodutivos) muito provavelmente seja fruto da imaginação hiperativa de frei Gaspar de Carvajal, dominicano espanhol que foi o primeiro cronista europeu a atravessar a região em 1542, muitos outros dados relatados por Carvajal e outros autores dos primeiros séculos são verdadeiros. Cheia de gente e de monumentos, culturalmente vibrante e economicamente dinâmica: essa era a Amazônia pré-colombiana.

Tangas e cobras

O exemplo mais bem estudado dessas civilizações amazônicas talvez seja o da região leste da ilha de Marajó. Uma série de acasos geográficos fez com que essa área fosse repleta de campos alagáveis que lembram mais o Pantanal do que a imagem que normalmente temos da Amazônia. Mais ou menos a partir do ano 500 d.C., os moradores da região desenvolveram um sistema de construção de mounds (conhecidos por lá como “tesos”) e de represas que lhes permitia escapar enxutos à fase das cheias, de janeiro a junho, e controlar o suprimento de peixes que saíam do curso normal dos rios para desovar durante a inundação.

Tudo indica que, no alto dos tesos, desenvolveu-se uma cultura aristocrática baseada no controle dos recursos pesqueiros. A arte funerária em cerâmica feita para os senhores de Marajó é uma das mais requintadas das Américas, com motivos estilizados da fauna – em especial as curvas e as escamas de serpentes como a sucuri. Tangas de cerâmica com diferentes decorações parecem ter sido usadas em cerimônias ligadas aos diferentes estágios da vida feminina, levando em conta a simbologia da fertilidade nesses desenhos. A disposição geográfica dos mounds marajoara parece ter sido cuidadosamente planejada para proteger certos tesos maiores, que seriam centros cerimoniais e de moradias aristocráticas, e cercar as represas nas quais alevinos eram criados.

Subindo o rio, nas regiões das atuais Santarém (mais a leste) e Manaus (mais a oeste), os últimos séculos antes da chegada dos europeus viram um grande crescimento demográfico, a intensificação da atividade agrícola e, principalmente, do uso dos ricos recursos pesqueiros amazônicos. Santarém, em particular, tinha “complexidade e escala urbanas”, segundo a arqueóloga americana Anna Roosevelt (sim, parentes daqueles Roosevelt presidenciais), da Universidade de Chicago em Illinois. Seriam 15 quilômetros quadrados de área construída, com a produção intensiva de cerâmica ritual e dos famosos muiraquitãs, amuletos de pedra semipreciosa esverdeada (muitas vezes no formato de anfíbios) que circulavam por boa parte da América do Sul e até pelo Caribe como objetos de alto valor – mal comparando, como se fossem iPhones mágicos.

Mas, por enquanto, as marcas mais impactantes da presença humana na floresta vêm do Alto Xingu. Michael Heckenberger, antropólogo da Universidade da Flórida em Gainesville, junto com Carlos Fausto e Bruna Franchetto, do Museu Nacional da UFRJ, mostraram que, em primeiro lugar, havia cerca de dez vezes mais povoados indígenas na região antes do século 16 e que, de quebra, as maiores entre essas aldeias eram dez vezes mais populosas que suas equivalentes modernas, chegando a ter milhares de habitantes, similares a pequenas cidades medievais ou da Grécia Antiga.

Dados de satélite mostram estruturas cuidadosamente planejadas ordenando a antiga paisagem do Alto Xingu. As maiores aldeias, que provavelmente eram centros religiosos com até dois “terreiros” para festas sagradas, serviam como ponto de partida para uma rede de estradas que as cortava nos sentidos leste-oeste, norte-sul e direções secundárias em ângulos de 45 graus. Tais estradas chegavam a ter 50 metros de largura, estendiam-se por vários quilômetros e contavam com pontes e “acostamentos” feitos com terra. Esses grandes povoados contavam ainda com muralhas de toras de madeira, controlavam o cultivo de grandes lavouras de mandioca e pomares de pequi e, tal como em outros lugares da Amazônia, lagoas artificiais para a prática da piscicultura e a criação de tartarugas, cobiçadas por sua carne e seus ovos. Levando em conta todas essas evidências, estima-se que a população amazônica na época do contato com os europeus pudesse chegar a 8 milhões de habitantes (conta que inclui as áreas do ecossistema nos países vizinhos do Brasil). Como comparação, o Brasil só chegou perto da casa dos 10 milhões de habitantes no fim do século 19.

Sementes de línguas

Uma pista crucial da importância da Amazônia como berço de civilizações vem da linguística. Entre os povos nativos da América do Sul, a diversidade de idiomas é a regra. Nosso pedaço do continente tem cerca de uma centena de famílias linguísticas, o que dá pouco menos de um quarto do total mundial. Desse conjunto, nada menos que 50% corresponde a famílias de um único membro, as chamadas línguas isoladas, que não possuem parentes conhecidos.

E daí? Bem, a comparação com o Velho Mundo pode ser instrutiva nesse aspecto. Na Europa inteira, há uma única língua isolada (o basco, na Espanha), e quase todas as falas por lá descendem do tronco linguístico indo-europeu, o qual, como o nome indica, também ocorre na Índia, no Irã e em outros lugares da Ásia. Acredita-se que as línguas indo-europeias tenham alcançado tamanho sucesso graças a alguma vantagem competitiva de que gozavam seus falantes originais – hoje, a hipótese mais aceita é a de que esse “algo a mais” em favor deles tenha sido a domesticação do cavalo, conferindo aos primeiros indo-europeus o equivalente pré-histórico de tanques de guerra.

Expansões linguísticas similares podem ser vistas no Extremo Oriente – caso dos vários dialetos chineses, falados numa área gigantesca por mais de 1 bilhão de seres humanos – e na África, onde os idiomas bantos se espalham de Camarões à África do Sul. Nesses dois exemplos, a vantagem de tais grupos parece ter vindo do desenvolvimento de pacotes agrícolas pré-históricos muito eficientes, que permitiram que os ancestrais dos Han (grupo étnico dominante da China) e dos bantos se multiplicassem mais do que seus concorrentes, derrotando e/ou assimilando as populações que estavam no seu caminho.

A diversidade linguística sul-americana indicaria que nada parecido jamais aconteceu por aqui? Mais ou menos. Por um lado, de fato, nenhum grupo talvez tenha tido vantagens competitivas tão avassaladoras quanto os indo-europeus. Mas algumas famílias linguísticas, por outro lado, têm distribuições que abarcam milhares de quilômetros e dezenas de idiomas. “Quando a gente olha com mais calma, percebe que ocorreram expansões sul-americanas que não ficam nada a dever a esses processos do Velho Mundo”, diz Jonas de Souza. E é nesse ponto que a coisa fica interessante: quase todos esses grupos têm origem amazônica.

O mais famoso é um velho conhecido de qualquer pessoa no Brasil: os Tupi e Guarani, que se espalhavam por quase toda a costa brasileira (e um bom pedaço da uruguaia), bem como por pedaços substanciais do Paraguai e trechos da Amazônia, no começo do século 16. É praticamente certo, com base nos dados de diversidade linguística, que esse grupo tenha surgido na atual Rondônia alguns milênios antes do nascimento de Cristo.

Já as etnias da família linguística Aruak (que pode ter surgido no noroeste da Amazônia ou em outros locais da bacia) têm distribuição geográfica ainda mais ampla, da Bolívia ao Caribe. Os Taino, primeiros indígenas com quem Colombo topou em 1492, pertenciam a esse grande grupo; aliás, um estudo genético recente mostrou que eles eram parentes próximos dos Palikur, uma tribo que ainda vive no Amapá. E, a propósito, os mares caribenhos ganharam esse nome graças aos Carib, membros de outra família linguística de ampla distribuição e raízes amazônicas que também acabou navegando para a América Central e colonizou certas ilhas por lá. As alianças multiétnicas que hoje caracterizam o Alto Xingu envolvem principalmente grupos Aruak e Carib; acredita-se que um sistema parecido com o que existe hoje, mas numa escala muito maior, teria sido o responsável pela criação dos monumentos xinguanos da Idade Média, talvez sob coordenação original dos Aruak, grupo com tradição em comércio de longa distância e diplomacia em outros pontos da bacia amazônica.

A única grande família linguística nativa do atual Brasil que não tem essa associação próxima com a Amazônia é a Macro-Jê, mais típica da região central do país e de áreas do interior das regiões Sul e Sudeste (exemplos são, respectivamente, os Xavante e os Kaingang). “Mesmo assim, tenho colegas que trabalham com linguística que enxergam a maior diversidade Macro-Jê na fronteira sul da Amazônia”, aponta Souza – e essa é uma pista crucial a respeito do local de origem de uma família de idiomas: em geral, a área com a maior diversidade costuma ser o berço de um grupo, basicamente porque ele existiu ali por mais séculos e, com isso, teve mais tempo para se diversificar.

Considerando o que sabemos sobre outras expansões linguísticas mundo afora, faz sentido imaginar que as etnias amazônicas saíram na frente graças às suas práticas agrícolas, ao menos em parte. E, de fato, várias plantas importantes parecem ter sido domesticadas inicialmente na Amazônia ou em regiões próximas, espalhando-se de lá para o resto do continente. A lista inclui a mandioca, o abacaxi, o cacau, o amendoim e uma série de palmeiras frutíferas, como a pupunha – no total, calcula-se que mais de 80 espécies amazônicas acabaram sendo adaptadas para o uso humano. Além disso, o milho, vindo do México, obrigatoriamente teve de passar pelo território amazônico antes de chegar às demais regiões sul-americanas. Com tanta diversidade nas mãos, os grupos que deixaram o berço amazônico carregavam consigo um pacote tecnológico adaptado a diversos ambientes de floresta tropical – o que teria ajudado os Tupi e Guarani a colonizar regiões de mata atlântica, análogos costeiros da Amazônia, argumenta Souza.

Mistérios do colapso

Explicar o abismo entre o passado revelado pela arqueologia e o chamado presente etnográfico – ou seja, as condições relativamente modestas das sociedades amazônicas nos últimos séculos – envolve certa dose de conjecturas. Mais uma vez, é importante não enxergar a Amazônia como um único grande bloco civilizacional: até onde sabemos, cada região tinha sua própria dinâmica econômica e política, e não faz sentido esperar que todas caminhassem juntas.

Em Marajó, por exemplo, os aristocratas construtores de tesos parecem ter deixado de controlar os recursos pesqueiros e a vida ritual do leste da ilha cerca de dois séculos antes do primeiro contato com os europeus. Nessa época, cessam tanto o planejamento de novas estruturas monumentais quanto a produção em massa da arte marajoara “clássica”. Por quê?

Não está claro – há quem fale em flutuações climáticas que poderiam ter alterado o regime das cheias e, portanto, o controle dos recursos ligados a esses eventos do qual dependiam as chefias de Marajó. Mais ou menos na mesma época, as pistas trazidas pela cerâmica apontam para a chegada de forasteiros de idioma Aruak à ilha, o que pode ter ocasionado conflitos (apesar da fama de bonzinhos dos canoeiros Aruak) e alguma forma de caos político. Por outro lado, alguém mais cético e mal-humorado poderia observar que mudança climática e tribos invasoras são os mais tradicionais curingas da pesquisa arqueológica, invocados de modo meio genérico toda vez que algum processo catastrófico misterioso precisa ser explicado. Sem mais e melhores dados, fica difícil apontar o que é mais provável.

Da mesma forma, o trabalho de arqueólogos como Eduardo Góes Neves, da USP, indica que o auge das grandes aldeias da Amazônia Central veio pouco depois do ano 1000 do nosso calendário. Nos séculos seguintes, há sinais sinistros de conflito e de declínio: a área ocupada em alguns sítios arqueológicos encolhe, outros ganham paliçadas, valas e até sistemas defensivos que tentam transformar a ponta de uma península em ilha, separada da terra firme. Para Neves e seus colegas, em vez de uma progressão constante rumo a uma complexidade social cada vez maior, várias regiões da Amazônia passavam por processos de natureza mais cíclica, alternando crescimento populacional e centralização política com fases de população menor, mais dispersa e mais igualitária.

Essas ressalvas são importantes, mas o fato é que, no momento do contato com os europeus, todas as evidências apontam para uma região amazônica com população relativamente densa em quase todos os lugares. Como explicar, então, as transformações que levaram à feição atual das etnias da Amazônia, com suas sociedades relativamente móveis, igualitárias e de pequena escala? Se o que vemos em outros lugares das Américas pode servir de guia, a resposta para o enigma é simples: doenças infecciosas. Com efeito, um paradoxo muito similar ao amazônico também ocorreu no vale do rio Mississipi, nos atuais Estados Unidos. Os relatos de exploradores espanhóis do século 16, confirmados pela arqueologia, também falam em grandes populações e monumentos – muitos deles são mounds, vagamente similares aos de Marajó –, mas o cenário muda radicalmente do século 18 em diante, com o desaparecimento quase completo da monumentalidade e das organizações sociais complexas. A ideia é que os primeiros contatos com os invasores ibéricos, em ambos os lugares, teriam sido suficientes para desencadear a transmissão de micróbios do Velho Mundo contra os quais não tinham defesas biológicas.

Sarampo, varíola, gripe e outros assassinos microscópicos dizimaram os povos que encontraram as primeiras expedições – e também outros grupos que nem chegaram a ver um europeu, mas tinham contatos comerciais, diplomáticos ou bélicos com os visitados por espanhóis ou portugueses. Esse telefone sem fio epidemiológico está comprovado, aliás, no caso mais documentado do Império Inca. Antes que Francisco Pizarro e seu bando de aventureiros espanhóis iniciasse a conquista desse Estado andino, uma epidemia de varíola vinda dos territórios já conquistados pela Espanha ao norte matou milhares de habitantes dos domínios incas, incluindo possivelmente o próprio imperador Huayna Capac e outros membros da família real.

Algo muito parecido deve ter acontecido na Amazônia brasileira. É inegável que os povos indígenas atuais são herdeiros de milhares de anos da adaptação humana à floresta, mas a ironia é que suas sociedades atuais também podem ser descritas como sobreviventes de um apocalipse em miniatura. Ainda vai ser preciso muito trabalho para recuperar um quadro mais completo do mundo que esses povos perderam depois de 1500.

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“1499: O Brasil Antes de Cabral”: quase 12 mil exemplares vendidos! https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/28/1499-o-brasil-antes-de-cabral-quase-12-mil-exemplares-vendidos/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/28/1499-o-brasil-antes-de-cabral-quase-12-mil-exemplares-vendidos/#respond Wed, 28 Mar 2018 18:07:02 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2017/07/capa-1499-you-180x101.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4970 Uma nota rápida para dividir com os leitores do blog a alegria deste escriba: recebi ontem a prestação de contas da editora HarperCollins Brasil, que publicou em agosto passado meu livro “1499: O Brasil Antes de Cabral”. As notícias são muito boas: quase 12 mil exemplares vendidos em menos de um semestre (os dados vão do início das vendas até 31 de dezembro de 2017). Nesse período curtinho, já é o meu livro mais vendido até hoje (os anteriores, mesmo com anos de estoque, nunca passaram muito da barreira dos 10 mil exemplares). Se parece pouco, considerem que, de modo geral, os livros de não ficção no Brasil saem com tiragem de 3.000 exemplares e demoram uns cinco anos para esgotar, isso com alguma sorte.

Obrigado a todos os que têm se interessado por uma visão renovada, mais interessante e menos preconceituosa sobre os povos que habitaram o Brasil antes da chegada dos europeus. E vêm pelo menos mais dois livros por aí neste ano, fiquem ligados!

Interessado mas ainda não conhece o livro? Esta playlist do nosso canal no YouTube tem vários vídeos com um gostinho do que você poderá encontrar nele.

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João Zilhão, o português paladino dos neandertais, fala à Folha https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/20/joao-zilhao-o-portugues-paladino-dos-neandertais-fala-a-folha/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/20/joao-zilhao-o-portugues-paladino-dos-neandertais-fala-a-folha/#respond Tue, 20 Mar 2018 17:02:33 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/Joao_Zilhao-320x213.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4903 Costumo conversar com o arqueólogo português João Zilhão faz mais ou menos 15 anos. Apaixonado, articulado, extremamente lúcido e combativo, Zilhão teve peito para remar contra o corrente durante algumas décadas, na época em que o consenso entre os especialistas em evolução humana era de que os neandertais, nossos primos europeus extintos, eram muito inferiores a nós do ponto de vista comportamental e jamais poderiam ter se miscigenado com os primeiros humanos modernos a deixar a África.

Bem, Zilhão riu por último, não apenas com a comprovação genética de que houve, de fato, hibridização entre Homo sapiens e neandertais como por sua descoberta mais recente: exemplares inequívocos de arte produzida por esses humanos arcaicos nas cavernas da Espanha. Só agora tive tempo de publicar a íntegra da entrevista que ele me concedeu na época dessa publicação. Apreciem o modo “full pistola” do pesquisador, como diz o vulgo.

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1)O sr. vê algum significado no fato de esses exemplos de arte neandertal descobertos por sua equipe não serem “não figurativos”, ou seja, sem desenhos realistas, por falta de palavra melhor? 

Nenhum significado em especial, a não ser que as primeiras formas de representação material de símbolos talvez tenham sido de tipo abstrato/geométrico. Haverá seguramente quem venha dizer “Ah! Mas não pintavam figuras, logo não eram tão evoluídos como nós!” Bastam dois dedos de testa para ver que é um argumento absurdo. Será que a pintura realista de um cavalo é mais “complexa” ou “avançada” do que a representação do mesmo cavalo através da conjugação dos símbolos lineares “c”, “a”, “v”, “a”, “l” e “o”? Eu diria que é ao contrário…

2)Temos visto datações mais antigas de H. sapiens em lugares como o monte Carmelo, em Israel, além da proposta de uma origem um pouco mais antiga da espécie por volta de 300 mil anos no norte da África. Isso pode abrir uma brecha para alguém postular uma presença de H. sapiens mais recuada também na Europa, se a pessoa for uma defensora empedernida de que só nossa espécie tinha comportamento simbólico, ou ninguém iria tão longe, na sua opinião?

Posso responder a isso de três maneiras diferentes, escolha a que mais goste, todas são válidas:

1) Esse alguém também pode postular que estas coisas foram feitas por marcianos, não pode? E eu posso provar que não? Não, não posso. Da mesma maneira que, se alguém me diz, “Você pode provar que Deus não existe? Não pode, pois não? Logo, Deus existe”. É a lógica do pensamento religioso, não é a lógica do pensamento científico.

2) Há mais de 150 anos que se faz arqueologia paleolítica na Europa. Há milhares de jazidas datadas do período entre 300.000 e 40.000 anos, nas quais se descobriram milhares de restos neandertais pertencentes a mais de 500 indivíduos diferentes distribuídos de norte a sul e de oeste a este (da Bélgica ao sul de Itália, de Portugal ao Altai), e zero, repito, zero, restos de “modernos”. Não é viés de amostragem.

3) Esse alguém tem toda a razão! É absolutamente certo que a principal conclusão destes resultados é que, entre 300.000 e 40.000 anos a Europa estava habitada pelo Homo sapiens. Nuance: uma variante (ou “raça”, se quiser) de Homo sapiens a que coloquialmente chamamos neandertais.

3)Apesar da solidez das evidências apresentadas pelo sr., também dá para imaginar que alguns continuarão dizendo: “Mesmo com comportamento simbólico e arte, os neandertais em sua maioria desapareceram, logo os H. sapiens tinham algo, do ponto de vista cognitivo, que os neandertais não tinham”. Como escapar desse tipo de raciocínio?

Respondendo “não sejam ‘neandertais’”? … Ou, havendo paciência, esclarecendo que também desapareceram os Vikings da Groenlâdia, os Selknam/Ona da Terra da Fogo, para já não falar do trabalhinho que os madeireiros e os garimpeiros da Amazônia vêm fazendo com as populações indígenas. Muitas já desapareceram, outra vão desaparecer: porque eram/são cognitivamente inferiores? Por acaso (ou não?) era essa a explicação que davam os poderes coloniais oitocentistas para justificar a expropriação/extermínio dos povos indígenas. São atrasados, é o destino que merecem… E, já agora, os neandertais não “desapareceram” nem se “extinguiram”, foram absorvidos ou assimilados, como o demonstra o fato de 50-60% do seu patrimônio genético ainda se poder encontrar entre nós, 40.000 anos depois.

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Por que a vida das mães humanas é tão complicada? https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/por-que-a-vida-das-maes-humanas-e-tao-complicada/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/por-que-a-vida-das-maes-humanas-e-tao-complicada/#respond Mon, 19 Mar 2018 18:09:03 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/mulher-veia-320x213.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4893 Por motivos de falta de espaço, um texto que eu havia preparado para uma revista sobre as raízes biológicas da maternidade humana acabou não sendo publicado. É com prazer, portanto, que compartilho essa minha tentativa de resumir o que significa ser mãe na nossa espécie com os leitores do blog. Espero que gostem – o título de trabalho original era algo como “Predestinada a dar à luz?”.

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Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso há de concordar que ser mulher e mãe não é brincadeira. Aliás, tem sido quase sempre assim desde antes de existirem mulheres propriamente ditas. A vida dura das genitoras humanas já estava esboçada, em grande medida, centenas de milhões de anos atrás, quando surgiram as diferenças de tamanho e características que ainda distinguem óvulos de espermatozoides.

Pode parecer maluquice, mas é a pura verdade. Essa distinção, que provavelmente é tão antiga quanto a origem dos primeiros animais, é o elemento mais básico que separa um sexo do outro e tem uma série de consequências importantes. A primeira delas: óvulos são proporcionalmente enormes – basta dizer que eles estão entre as raras células que a gente consegue observar a olho nu –, enquanto espermatozoides costumam ser nanicos. Esse tamanhão dos óvulos permite que eles armazenem uma quantidade considerável de nutrientes e outras moléculas essenciais para o desenvolvimento do futuro embrião; por outro lado, suas contrapartes masculinas não passam de micronadadores de longa distância, sem nem um tiquinho de gordura sobrando em sua estrutura celular.

Outra diferença crucial: óvulos são relativamente escassos, em especial entre mamíferos – não é à toa que existe o chamado ciclo menstrual, durante o qual eles são liberados aos pouquinhos (um por um ou, bem mais raramente, dois por vez no caso dos seres humanos) num período específico do mês. Em comparação, a tradicional falta de sutileza masculina fica clara: centenas de milhões de espermatozoides jorrados a cada ejaculação. Chega a dar vergonha.

Questão de economia
E daí? Daí que essas diferenças podem ser traduzidas em linguagem econômica de um jeito bem simples: em geral (grife mentalmente esse “em geral”, porque existe muita variação na natureza, óbvio), óvulos são caros, espermatozoides são baratos. Ou, só pra continuar falando em economês, o investimento reprodutivo que as moças da maioria das espécies fazem tende a ser maior do o que dos rapazes (de novo, em média, com exceções etc.). Isso acontece porque, primeiro, o organismo normalmente gasta mais energia e recursos para produzir células sexuais femininas do que masculinas.

Esse desequilíbrio fica ainda mais claro quando o óvulo fecundado é gestado dentro da barriga da mãe, como acontece com quase todos os mamíferos (embora certos machos também fiquem grávidos, como é o caso dos cavalos-marinhos). Além disso, é relativamente comum que investimentos pesados, daqueles que nem o BNDES toparia financiar, continuem após o nascimento da filharada, com a maior parte ou a totalidade do chamado cuidado parental – amamentar, carregar de lá para cá etc. – ficando nas costas da garota (de novo, exceções não faltam; em muitas espécies de aves, o papai tem grandes responsabilidades nessa esfera). Esse cenário geral vale para uma grande variedade de animais que adotam o cuidado parental – o que, claro, não é o caso dos muitos bichos que apenas botam seus ovos e deixam os bebês se virarem desde o nascimento, como as tartarugas-marinhas – e provavelmente é a regra para os mamíferos desde que eles surgiram, lá se vão mais de 200 milhões de anos.

Tartaruga-marinha: sem cuidado parental, diferentemente da nossa espécie (Crédito: Creative Commons)

Recorde agora que nós somos, no fundo, não mais que um tipo de grande símio africano com postura ereta e pouco pelo. As fêmeas humanas gestam seus bebês por nove meses e, quando os bichinhos nascem, são completamente indefesos, descoordenados e precisam mamar, às vezes por anos a fio. Tudo isso significa que o padrão mais comum de investimento reprodutivo entre outros mamíferos – e as assimetrias e os desequilíbrios entre os sexos que derivam dele – também se manifesta entre nós de certa maneira, o que explica parte importante do peso que recai sobre os ombros das mulheres desde que o mundo é mundo.

Ainda seguindo o raciocínio econômico dos últimos parágrafos, faz sentido que elas sejam significativamente mais seletivas na escolha de parceiros sexuais que os homens. Afinal, na era pré-anticoncepcionais confiáveis (ou seja, basicamente pelos séculos dos séculos, se descontarmos o piscar de olhos entre os anos 1960 e hoje), o espectro de uma gravidez provocada por sexo com o sujeito errado era assunto muito sério. Sempre que podiam escolher com quem gerar bebês, as mulheres tendiam, sabiamente, a não dar bola para qualquer mané (ou elas ou suas famílias, claro, mas temos boas razões para acreditar que uniões arranjadas são coisa recente, dos últimos 10 mil anos ou menos, quando fatores como riqueza e diferenciação social se tornaram comuns pela primeira vez). Homens, por sua vez, tinham incentivos consideravelmente maiores para investir seu suprimento virtualmente ilimitado de espermatozoides da maneira mais ampla possível: o que caísse na rede era peixe, certo?

Bem, mais ou menos – aqui, é preciso não traçar um cenário unilateral demais. Somos uma espécie mais complicada do que os gorilas ou elefantes-marinhos, bichos que formam haréns nos quais um único macho fecunda regularmente diversas fêmeas, enquanto os demais membros do sexo masculino ficam chupando o dedo (de novo, a poligamia parece ser uma invenção recente entre nós). Os pais da nossa espécie são meio preguiçosos, não se pode negar, mas ainda assim até que dão uma mãozinha considerável na criação dos bebês, e o mesmo deve ter valido desde as origens da linhagem humana, segundo a maioria dos antropólogos. Isso, claro, diminui um pouco a avidez deles no que diz respeito a saltar a cerca de casa. Por outro lado, desde que o mundo é mundo, mulheres assumem o risco de se envolver com outro parceiro se perceberem que o atual é um banana ou não dá a mínima para elas – ou seja, no fundo, quando se dão conta de que ele não está colaborando com sua parte no bolão do investimento reprodutivo.

Ressalvas à parte, porém, o fato é que, em média (e considerando que existe uma enorme variabilidade de comportamento de pessoa para pessoa, algo que a gente nunca pode esquecer), as diferenças entre os sexos que estão ligadas a causas biológicas ainda são significativas. E há dados intrigantes que sugerem que as repercussões disso vão além do comportamento sexual, afetando a maneira como as mulheres lidam com os anos de escola ou o mercado de trabalho, por exemplo.

Uma das defensoras dessa visão é a psicóloga do desenvolvimento canadense Susan Pinker, autora do livro “O Paradoxo Sexual”. O primeiro ponto ressaltado por ela é que, em média, não há diferença detectável de inteligência ou habilidade entre homens e mulheres: é basicamente balela sair por aí dizendo que meninas “não têm cabeça para matemática” ou não conseguem se impor quando viram chefes, por exemplo.

Dilema dos extremos
O curioso, no entanto, é que essa grande semelhança média ao que parece esconde uma diferença estatística significativa. No que diz respeito a diversas variáveis comportamentais e mentais, as mulheres têm uma tendência maior a serem relativamente normais e equilibradas, enquanto os homens acabam se espalhando mais para os extremos. Sem meias-palavras, parece que há mais gênios entre os homens, só que também há mais idiotas entre eles (essa segunda parte não deve ser surpresa para as mulheres, aliás). É plausível – embora seja difícil de demonstrar cabalmente – que isso tenha relação com as estratégias evolutivas diferentes de cada sexo: para os homens, valeria mais a pena “apostar” (de forma inconsciente, claro) em comportamentos extremos, que talvez trouxessem mais retorno em quantidade de parceiras sexuais, do que para as mulheres, para as quais táticas mais conservadoras seriam um jeito melhor de fazer desabrochar seu potencial reprodutivo.

Para Susan, isso também ajudaria a explicar por que, apesar do aumento do número de mulheres em posições de destaque em áreas como o direito e as ciências biológicas, elas ainda são minoria em física ou computação (campos que favorecem interesses muito específicos e, por vezes, estreitos) ou no comando de grandes empresas (ocupações nas quais se espera que o sujeito basicamente não tenha mais vida pessoal).

O indefectível Sheldon de “The Big Bang Theory”: exemplo dos extremos masculinos? (Crédito: Divulgação)

Isso quer dizer que as mulheres não são tão duronas profissionalmente? Pode ser justamente o contrário, argumenta ela. “Durante a crise financeira de 2008, mais homens perderam seus empregos e cometeram suicídio, enquanto as mulheres se recuperaram com muito mais facilidade, porque elas tinham uma tendência menor a colocar todos os seus ovos no mesmo cesto. Enquanto muitos homens trabalhavam 70 horas semanais num emprego único que envolvia um só conjunto de habilidades, elas tinham dois trabalhos de meio período, em ramos como serviços ou educação, que não fecham vagas com tanta facilidade”, diz Susan. Faz sentido imaginar que há alguma ligação entre tudo isso e a responsabilidade biológica que a mulher assume com a cria. Aliás, há alguns indícios de que o cérebro feminino lida melhor com o “multitasking”, a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo, e que isso tem relação com o efeito dos hormônios femininos sobre o sistema nervoso.

Será que tudo isso significa que exigir participação igual das mulheres em todas as áreas do conhecimento e do mercado de trabalho é utópico e até contraproducente, gerando um conflito desnecessário entre os sexos? Bem, a coisa é complicada. De um lado, ignorar a influência da biologia sobre tudo o que nós somos equivale a tapar o Sol com a peneira. De outro, biologia é importante, mas não é destino escrito nas estrelas – do contrário muita gente lendo esse texto teria morrido na infância por causa de infecções bobas que dizimavam as pessoas antes da invenção dos antibióticos. Talvez a maioria das mulheres continue a não se empolgar com a ideia de trabalhar como mecânica de caminhões ou de liderar uma multinacional, mesmo que as portas dessas carreiras estejam totalmente abertas para elas – e tudo bem, ora: a liberdade de escolher também deveria valer para quem não vê problema em seguir o caminho que parece ser o mais natural. Tudo bem, repito, desde que a gente não esqueça que pessoas são indivíduos, não médias populacionais: algumas mulheres (talvez a minoria?) escolherão caminhos que veríamos como “masculinos” – e não serão menos femininas, ou menos humanas, por causa disso. Nenhuma das duas possibilidades é motivo para a gente ficar arrancando os cabelos.

Por outro lado, não há motivo para não repensarmos o que entendemos por “sucesso” ou “liderança”, hoje com base em critérios tradicionalmente masculinos. Por que diabos uma alta executiva ou uma professora universitária de renome internacional deveriam ser forçadas a ficar longe de seus filhos, ou até se sentirem pressionadas a não formar uma família, para conseguir cumprir o papel tradicional de escravo do trabalho? Por que não criar incentivos para que empresas e órgãos governamentais deem mais espaço para creches de qualidade, horários flexíveis e “home office” (o popular trabalho em casa)? Medidas como essas podem muito bem criar ambientes mais equitativos e recompensadores pra todos, homens e mulheres. O escriba que vos fala sabe bem o que é isso: abri mão de ser editor de Ciência na Folha para morar no interior de São Paulo com a minha família e poder ver meus filhos todo santo dia. Não acho que eu seja “menos homem” por causa disso. Diferenças biológicas não deveriam ser vistas como camisas-de-força.

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Entenda a evolução do ser humano em 12 aulas com Walter Neves https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/10/entenda-a-evolucao-do-ser-humano-em-12-aulas-com-walter-neves/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/10/entenda-a-evolucao-do-ser-humano-em-12-aulas-com-walter-neves/#respond Sat, 10 Mar 2018 13:55:12 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/waltinho-320x213.jpeg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4868 Encontrar materiais confiáveis, bem-feitos e gratuitos sobre evolução humana em português do Brasil é uma perpétua dor de cabeça. Mas nada tema, nobre leitor: um dos principais pesquisadores da área no país resolveu oferecer tudo isso de mão beijada para você no YouTube. Walter Neves, professor aposentado — mas ainda altamente ativo — do Instituto de Biociências da USP, que se notabilizou por seu trabalho com a célebre Luzia, a mulher mais antiga das Américas (seu esqueleto tem idade estimada em 12 mil anos), preparou 12 aulas no canal da USP na plataforma online sobre o tema.

Eis o primeiro gostinho, sobre humanos versus chimpanzés.

A playlist inteira das aulas está neste link. Divirta-se e aprenda!

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Um guia para entender o clássico “Armas, Germes e Aço” https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/07/um-guia-para-entender-o-classico-armas-germes-e-aco/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/07/um-guia-para-entender-o-classico-armas-germes-e-aco/#respond Wed, 07 Mar 2018 13:57:29 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/gunsgerms-320x213.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4857 Nunca leu o clássico “Armas, Germes e Aço”, do biogeógrafo Jared Diamond? Não sabe o que está perdendo, gentil leitor(a)! Neste vídeo, explico as cinco grandes ideias dessa obra seminal que examina a história humana com a ajuda da biologia evolutiva. Confira!

Aproveito também para compartilhar de novo um vídeo do nosso canal no YouTube sobre o papel crucial das doenças trazidas por animais domésticos na história humana.

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Ciência, religião e rock ‘n roll https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2017/04/05/ciencia-religiao-e-rock-n-roll/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2017/04/05/ciencia-religiao-e-rock-n-roll/#respond Wed, 05 Apr 2017 21:32:41 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2017/04/capa-rock-ciência-e-religião-938x516-180x99.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4166 Já faz bastante tempo, mas recordar é viver — e de repente vocês ainda não viram, não é mesmo? No vídeo de hoje no nosso canal do YouTube, vocês podem conferir na íntegra a minha participação no podcast Rock Com Ciência, uma das iniciativas de divulgação científica mais bacanas que eu conheço. Dá até pra me ouvir cantando uns versinhos do Kiss mais pro final. O tema foi, lógico, a relação entre ciência e religião. Obrigado ao Rubens Pazza e à Karine Kavalco, professores da Universidade Federal de Viçosa, pelo convite!

Se quiser baixar a versão original, eis o link:

http://www.rockcomciencia.com.br/arquivos/2196

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