Darwin e Deus https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas Mon, 15 Nov 2021 14:20:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Por que a vida das mães humanas é tão complicada? https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/por-que-a-vida-das-maes-humanas-e-tao-complicada/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/por-que-a-vida-das-maes-humanas-e-tao-complicada/#respond Mon, 19 Mar 2018 18:09:03 +0000 https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/mulher-veia-320x213.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=4893 Por motivos de falta de espaço, um texto que eu havia preparado para uma revista sobre as raízes biológicas da maternidade humana acabou não sendo publicado. É com prazer, portanto, que compartilho essa minha tentativa de resumir o que significa ser mãe na nossa espécie com os leitores do blog. Espero que gostem – o título de trabalho original era algo como “Predestinada a dar à luz?”.

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Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso há de concordar que ser mulher e mãe não é brincadeira. Aliás, tem sido quase sempre assim desde antes de existirem mulheres propriamente ditas. A vida dura das genitoras humanas já estava esboçada, em grande medida, centenas de milhões de anos atrás, quando surgiram as diferenças de tamanho e características que ainda distinguem óvulos de espermatozoides.

Pode parecer maluquice, mas é a pura verdade. Essa distinção, que provavelmente é tão antiga quanto a origem dos primeiros animais, é o elemento mais básico que separa um sexo do outro e tem uma série de consequências importantes. A primeira delas: óvulos são proporcionalmente enormes – basta dizer que eles estão entre as raras células que a gente consegue observar a olho nu –, enquanto espermatozoides costumam ser nanicos. Esse tamanhão dos óvulos permite que eles armazenem uma quantidade considerável de nutrientes e outras moléculas essenciais para o desenvolvimento do futuro embrião; por outro lado, suas contrapartes masculinas não passam de micronadadores de longa distância, sem nem um tiquinho de gordura sobrando em sua estrutura celular.

Outra diferença crucial: óvulos são relativamente escassos, em especial entre mamíferos – não é à toa que existe o chamado ciclo menstrual, durante o qual eles são liberados aos pouquinhos (um por um ou, bem mais raramente, dois por vez no caso dos seres humanos) num período específico do mês. Em comparação, a tradicional falta de sutileza masculina fica clara: centenas de milhões de espermatozoides jorrados a cada ejaculação. Chega a dar vergonha.

Questão de economia
E daí? Daí que essas diferenças podem ser traduzidas em linguagem econômica de um jeito bem simples: em geral (grife mentalmente esse “em geral”, porque existe muita variação na natureza, óbvio), óvulos são caros, espermatozoides são baratos. Ou, só pra continuar falando em economês, o investimento reprodutivo que as moças da maioria das espécies fazem tende a ser maior do o que dos rapazes (de novo, em média, com exceções etc.). Isso acontece porque, primeiro, o organismo normalmente gasta mais energia e recursos para produzir células sexuais femininas do que masculinas.

Esse desequilíbrio fica ainda mais claro quando o óvulo fecundado é gestado dentro da barriga da mãe, como acontece com quase todos os mamíferos (embora certos machos também fiquem grávidos, como é o caso dos cavalos-marinhos). Além disso, é relativamente comum que investimentos pesados, daqueles que nem o BNDES toparia financiar, continuem após o nascimento da filharada, com a maior parte ou a totalidade do chamado cuidado parental – amamentar, carregar de lá para cá etc. – ficando nas costas da garota (de novo, exceções não faltam; em muitas espécies de aves, o papai tem grandes responsabilidades nessa esfera). Esse cenário geral vale para uma grande variedade de animais que adotam o cuidado parental – o que, claro, não é o caso dos muitos bichos que apenas botam seus ovos e deixam os bebês se virarem desde o nascimento, como as tartarugas-marinhas – e provavelmente é a regra para os mamíferos desde que eles surgiram, lá se vão mais de 200 milhões de anos.

Tartaruga-marinha: sem cuidado parental, diferentemente da nossa espécie (Crédito: Creative Commons)

Recorde agora que nós somos, no fundo, não mais que um tipo de grande símio africano com postura ereta e pouco pelo. As fêmeas humanas gestam seus bebês por nove meses e, quando os bichinhos nascem, são completamente indefesos, descoordenados e precisam mamar, às vezes por anos a fio. Tudo isso significa que o padrão mais comum de investimento reprodutivo entre outros mamíferos – e as assimetrias e os desequilíbrios entre os sexos que derivam dele – também se manifesta entre nós de certa maneira, o que explica parte importante do peso que recai sobre os ombros das mulheres desde que o mundo é mundo.

Ainda seguindo o raciocínio econômico dos últimos parágrafos, faz sentido que elas sejam significativamente mais seletivas na escolha de parceiros sexuais que os homens. Afinal, na era pré-anticoncepcionais confiáveis (ou seja, basicamente pelos séculos dos séculos, se descontarmos o piscar de olhos entre os anos 1960 e hoje), o espectro de uma gravidez provocada por sexo com o sujeito errado era assunto muito sério. Sempre que podiam escolher com quem gerar bebês, as mulheres tendiam, sabiamente, a não dar bola para qualquer mané (ou elas ou suas famílias, claro, mas temos boas razões para acreditar que uniões arranjadas são coisa recente, dos últimos 10 mil anos ou menos, quando fatores como riqueza e diferenciação social se tornaram comuns pela primeira vez). Homens, por sua vez, tinham incentivos consideravelmente maiores para investir seu suprimento virtualmente ilimitado de espermatozoides da maneira mais ampla possível: o que caísse na rede era peixe, certo?

Bem, mais ou menos – aqui, é preciso não traçar um cenário unilateral demais. Somos uma espécie mais complicada do que os gorilas ou elefantes-marinhos, bichos que formam haréns nos quais um único macho fecunda regularmente diversas fêmeas, enquanto os demais membros do sexo masculino ficam chupando o dedo (de novo, a poligamia parece ser uma invenção recente entre nós). Os pais da nossa espécie são meio preguiçosos, não se pode negar, mas ainda assim até que dão uma mãozinha considerável na criação dos bebês, e o mesmo deve ter valido desde as origens da linhagem humana, segundo a maioria dos antropólogos. Isso, claro, diminui um pouco a avidez deles no que diz respeito a saltar a cerca de casa. Por outro lado, desde que o mundo é mundo, mulheres assumem o risco de se envolver com outro parceiro se perceberem que o atual é um banana ou não dá a mínima para elas – ou seja, no fundo, quando se dão conta de que ele não está colaborando com sua parte no bolão do investimento reprodutivo.

Ressalvas à parte, porém, o fato é que, em média (e considerando que existe uma enorme variabilidade de comportamento de pessoa para pessoa, algo que a gente nunca pode esquecer), as diferenças entre os sexos que estão ligadas a causas biológicas ainda são significativas. E há dados intrigantes que sugerem que as repercussões disso vão além do comportamento sexual, afetando a maneira como as mulheres lidam com os anos de escola ou o mercado de trabalho, por exemplo.

Uma das defensoras dessa visão é a psicóloga do desenvolvimento canadense Susan Pinker, autora do livro “O Paradoxo Sexual”. O primeiro ponto ressaltado por ela é que, em média, não há diferença detectável de inteligência ou habilidade entre homens e mulheres: é basicamente balela sair por aí dizendo que meninas “não têm cabeça para matemática” ou não conseguem se impor quando viram chefes, por exemplo.

Dilema dos extremos
O curioso, no entanto, é que essa grande semelhança média ao que parece esconde uma diferença estatística significativa. No que diz respeito a diversas variáveis comportamentais e mentais, as mulheres têm uma tendência maior a serem relativamente normais e equilibradas, enquanto os homens acabam se espalhando mais para os extremos. Sem meias-palavras, parece que há mais gênios entre os homens, só que também há mais idiotas entre eles (essa segunda parte não deve ser surpresa para as mulheres, aliás). É plausível – embora seja difícil de demonstrar cabalmente – que isso tenha relação com as estratégias evolutivas diferentes de cada sexo: para os homens, valeria mais a pena “apostar” (de forma inconsciente, claro) em comportamentos extremos, que talvez trouxessem mais retorno em quantidade de parceiras sexuais, do que para as mulheres, para as quais táticas mais conservadoras seriam um jeito melhor de fazer desabrochar seu potencial reprodutivo.

Para Susan, isso também ajudaria a explicar por que, apesar do aumento do número de mulheres em posições de destaque em áreas como o direito e as ciências biológicas, elas ainda são minoria em física ou computação (campos que favorecem interesses muito específicos e, por vezes, estreitos) ou no comando de grandes empresas (ocupações nas quais se espera que o sujeito basicamente não tenha mais vida pessoal).

O indefectível Sheldon de “The Big Bang Theory”: exemplo dos extremos masculinos? (Crédito: Divulgação)

Isso quer dizer que as mulheres não são tão duronas profissionalmente? Pode ser justamente o contrário, argumenta ela. “Durante a crise financeira de 2008, mais homens perderam seus empregos e cometeram suicídio, enquanto as mulheres se recuperaram com muito mais facilidade, porque elas tinham uma tendência menor a colocar todos os seus ovos no mesmo cesto. Enquanto muitos homens trabalhavam 70 horas semanais num emprego único que envolvia um só conjunto de habilidades, elas tinham dois trabalhos de meio período, em ramos como serviços ou educação, que não fecham vagas com tanta facilidade”, diz Susan. Faz sentido imaginar que há alguma ligação entre tudo isso e a responsabilidade biológica que a mulher assume com a cria. Aliás, há alguns indícios de que o cérebro feminino lida melhor com o “multitasking”, a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo, e que isso tem relação com o efeito dos hormônios femininos sobre o sistema nervoso.

Será que tudo isso significa que exigir participação igual das mulheres em todas as áreas do conhecimento e do mercado de trabalho é utópico e até contraproducente, gerando um conflito desnecessário entre os sexos? Bem, a coisa é complicada. De um lado, ignorar a influência da biologia sobre tudo o que nós somos equivale a tapar o Sol com a peneira. De outro, biologia é importante, mas não é destino escrito nas estrelas – do contrário muita gente lendo esse texto teria morrido na infância por causa de infecções bobas que dizimavam as pessoas antes da invenção dos antibióticos. Talvez a maioria das mulheres continue a não se empolgar com a ideia de trabalhar como mecânica de caminhões ou de liderar uma multinacional, mesmo que as portas dessas carreiras estejam totalmente abertas para elas – e tudo bem, ora: a liberdade de escolher também deveria valer para quem não vê problema em seguir o caminho que parece ser o mais natural. Tudo bem, repito, desde que a gente não esqueça que pessoas são indivíduos, não médias populacionais: algumas mulheres (talvez a minoria?) escolherão caminhos que veríamos como “masculinos” – e não serão menos femininas, ou menos humanas, por causa disso. Nenhuma das duas possibilidades é motivo para a gente ficar arrancando os cabelos.

Por outro lado, não há motivo para não repensarmos o que entendemos por “sucesso” ou “liderança”, hoje com base em critérios tradicionalmente masculinos. Por que diabos uma alta executiva ou uma professora universitária de renome internacional deveriam ser forçadas a ficar longe de seus filhos, ou até se sentirem pressionadas a não formar uma família, para conseguir cumprir o papel tradicional de escravo do trabalho? Por que não criar incentivos para que empresas e órgãos governamentais deem mais espaço para creches de qualidade, horários flexíveis e “home office” (o popular trabalho em casa)? Medidas como essas podem muito bem criar ambientes mais equitativos e recompensadores pra todos, homens e mulheres. O escriba que vos fala sabe bem o que é isso: abri mão de ser editor de Ciência na Folha para morar no interior de São Paulo com a minha família e poder ver meus filhos todo santo dia. Não acho que eu seja “menos homem” por causa disso. Diferenças biológicas não deveriam ser vistas como camisas-de-força.

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Nicholas Wade: os genes e a história humana https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2014/07/15/nicholas-wade-os-genes-e-a-historia-humana/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2014/07/15/nicholas-wade-os-genes-e-a-historia-humana/#respond Tue, 15 Jul 2014 13:04:19 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=1567 O jornalista científico britânico Nicholas Wade (Crédito: Divulgação)
O jornalista científico britânico Nicholas Wade (Crédito: Divulgação)

Demorei muito mais do que gostaria, mas finalmente consegui traduzir a íntegra da minha conversa com o jornalista de ciência britânico Nicholas Wade sobre seu novo livro, “A Troublesome Inheritance” (“Uma Herança Problemática”), sobre a relação entre genética e características das chamadas raças humanas (como talvez o gentil leitor se lembre, escrevi reportagem a respeito).

O ponto central do livro, para quem não se lembra, é a ideia extremamente polêmica de que diferenças genéticas entre as raças humanas teriam tido um papel no desenvolvimento econômico e social do planeta. Para ser mais exato: geneticamente, povos de origem europeia e alguns asiáticos, como os chineses e japoneses, estariam “predispostos” a desenvolver sociedades complexas e ricas, em detrimento de povos como os africanos e os indígenas das Américas.

Sem mais delongas, vamos à sessão de perguntas e respostas com Wade.

Folha – No livro, o sr. tende a abordar os grupos raciais como categorias mais ou menos estanques, sem miscigenação. O que acontece se aplicamos a descobertas genômicas mais recentes a nações altamente miscigenadas, como o Brasil? Deveríamos esperar simplesmente um nível de desenvolvimento “intermediário” entre os níveis europeu e africano, por exemplo? E o que poderia ser previsto a respeito de sociedades que costumavam ser mais homogeneamente europeias, como os EUA, mas que estão recebendo cada vez mais imigrantes da América Latina e de outras regiões? Isso, em princípio, afetaria o nível de desenvolvimento americano, segundo a premissa do seu livro?

Wade – É impossível responder esse tipo de pergunta com precisão. Parece-me uma observação razoável dizer que países nos quais o tribalismo é forte têm mais dificuldade para fazer a transição para uma economia moderna do que países nos quais o tribalismo desapareceu há muito tempo. Mas uma nação como os Estados Unidos pode absorver facilmente pessoas de países tribais porque tais imigrantes acabam se ajustando ao comportamento social da população que já é maioria no país. Embora a genética tenha algum papel no comportamento social, a cultura e as tradições políticas são mais importantes, em especial no curto prazo. Então, não, esperar que os níveis de desenvolvimento econômico de um país tenham correlação com sua composição racial seria dar peso excessivo à genética.

OK, mas o sr. ainda não respondeu a parte da pergunta a respeito de países que já “começam” miscigenados, como o Brasil.

Ainda não sabemos o suficiente sobre a base genética do comportamento social humano para tentar responder a essa questão. Mas não vejo motivo para que uma população mestiça, como a do Brasil, não possa ser tão bem sucedida quanto a dos EUA, que também é uma sociedade com mistura racial. Os imigrantes vão acabar seguindo as regras sociais de seu país adotivo. Isso vale tanto para imigrantes chineses quanto africanos nos Estados Unidos, e o mesmo certamente também é verdade no Brasil.

As regras sociais são, em grande parte, definidas pela cultura, embora possa existir um pequeno componente genético. Algumas culturas políticas são favoráveis ao livre empreendedorismo e à inovação, outras não. Isso certamente é mais importante que a genética.

Uma das objeções levantadas pelo psicólogo evolucionista Steven Pinker aos argumentos do sr. é que, embora a evolução humana certamente tenha acontecido de forma diferente em cada região, é difícil pensar numa sociedade na qual as pressões seletivas em favor da inteligência não tenham sido dominantes. A inteligência é tão importante para um guerreiro africano quanto para o presidente de uma multinacional. Como o sr. responde a essa crítica?

No livro, sugiro que os pesquisadores deram atenção excessiva à inteligência. Um fator mais importante para o sucesso de uma sociedade seria seu grau de coesão social. No entanto, dentro de quase todas as sociedades, é verdade que a inteligência tende a ser recompensada com sucesso social.

No livro, o sr. é franco ao reconhecer que ainda estamos longe de identificar os trechos de DNA que poderiam comprovar a ideia de que há uma base genética forte para as diferenças entre sociedade. Nesse caso, não teria sido melhor ser mais cauteloso e evitar as especulações enquanto dados mais conclusivos não aparecem?

Em primeiro lugar, não vejo nada de errado com a especulação, desde que você deixe claro ao leitor que está especulando. De outro modo, como poderíamos explorar o desconhecido? Em segundo lugar, meu livro apresenta um argumento razoavelmente bom de que o comportamento social humano tem uma base genética. Em alguns casos, já conhecemos os mecanismos genéticos que estão em ação, como o sistema da oxitocina, envolvido na confiança dentro de grupos sociais, e o sistema do gene MAO-A, cujas variantes estão correlacionadas com o comportamento agressivo. Além disso, sabemos que houve grandes mudanças na estrutura social humana, tal como a transição de caçadores-coletores para comunidades sedentárias, o que quase certamente exigiu uma mudança evolutiva no comportamento social.

O sr. menciona o caso das comunidades de imigrantes libaneses, imigrantes chineses etc. que conseguem prosperar em sociedades desenvolvidas, enquanto os países de origem deles continuam muito atrás. Isso parece contradizer o ponto central do livro. Se fosse possível transferir toda a população do Líbano para Londres, será que todos eles prosperariam? Nesse caso, ficaria provado que as raízes genéticas do comportamento humano não são importantes, ao menos em termos étnicos.

A genética não explica tudo! A evolução, conforme explico em meu livro, provavelmente está envolvida em mudanças de longo prazo no comportamento social, como a transição ligada à Revolução Industrial, ou seja, de uma economia agrária para um Estado moderno e produtivo. Mas essa mudança no comportamento social não é suficiente para produzir uma economia moderna. As estruturas políticas necessárias para essa mudança também precisam existir. É por isso que a Revolução Industrial se espalhou de forma quase imediata da Inglaterra para outros países europeus, mas com um atraso substancial para países do Extremo Oriente, onde as estruturas políticas bloquearam o desenvolvimento econômico por muitas décadas.

As comunidades de imigrantes chineses  floresceram porque estavam livres dos controles autocráticos que abafavam a atividade econômica na China. Da mesma maneira, os libaneses no exterior estão livres dos arranjos tribais que ainda são predominantes na política do Líbano. No experimento que você sugere, se a população libanesa inteira fosse transportada para Londres e substituísse a população local, ela poderia acabar recriando os sistemas de governança tribal com a qual está acostumada. Mas, se essa população fosse distribuída pelo território do Reino Unido, provavelmente ficaria adaptada ao comportamento social local e seria tão produtiva quanto outras comunidades libanesas fora do Líbano.

Será que é mesmo correto comparar as pressões da seleção natural que existem em populações humanas com as que afetaram experimentos de seleção artificial, como raposas que se tornaram mansas e parecidas com cachorros depois da seleção rigorosa de muitas gerações de filhotes? Minha sensação é que existe uma enorme gama de pressões seletivas diferentes no caso dos seres humanos quando o assunto é sucesso reprodutivo. Às vezes vale a pena ser um sujeito trabalhador e consciencioso, às vezes vale a pena ser um criminoso com talento para seduzir mulheres, e tem sido sempre assim. 

O experimento com raposas mostra que o comportamento social tem uma base genética e pode ser mudado no prazo de apenas algumas gerações se as pressões seletivas forem fortes o suficiente. Portanto, é bastante plausível que o comportamento social humano tenha mudado ao longo do tempo, embora obviamente de forma mais lenta, já que as pressões seletivas não teriam sido tão intensas. As sociedades humanas são complexas e oferecem muitas rotas para o sucesso. Um criminoso com talento para seduzir mulheres certamente poderia ter sucesso reprodutivo em algumas circunstâncias. Gêngis Khan seria um exemplo, talvez ele se encaixe nessa descrição, já que 16 milhões de homens hoje carregam o cromossomo Y dele.
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Genética e raças humanas – versão do diretor https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2014/06/06/genetica-e-racas-humanas-versao-do-diretor/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2014/06/06/genetica-e-racas-humanas-versao-do-diretor/#respond Fri, 06 Jun 2014 11:22:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=1546 Folha de hoje traz uma versão curtinha da reportagem/resenha que fiz sobre o novo livro do respeitado jornalista de ciência britânico Nicholas Wade, ex-“New York Times”, sobre as raízes biológicas das raças humanas. Abaixo, segue a “versão do diretor”, já que eu ando escrevendo muito mais do que cabe ultimamente. Tem muito mais de onde veio essa, hehehe… em breve, publicarei por aqui a íntegra da entrevista que fiz com Wade e minha opinião mais detalhada sobre o livro. Divirtam-se!

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As raças humanas não seriam mera “construção social”, como dizem antropólogos e pensadores de esquerda, mas entidades com bases biológicas reais. Mais importante ainda, as diferenças genéticas entre as raças poderiam até explicar, em parte, o fato de europeus terem criado nações desenvolvidas, enquanto africanos ainda sofrem com a pobreza e as guerras tribais.

Essas são as principais teses do novo livro do jornalista de ciência britânico Nicholas Wade, 72, intitulado “A Troublesome Inheritance” (“Uma Herança Problemática”), que acaba de ser publicado nos EUA. Após quase 50 anos de carreira, 30 deles como um dos principais nomes da prestigiosa seção de ciência do diário americano “New York Times”, Wade resolveu mexer num dos maiores vespeiros da pesquisa moderna – são raros os cientistas que se arriscam a defender em público as teses da obra.

Para o autor, no entanto, essa cautela tem um grande componente de autocensura politicamente correta. O estudo cada vez mais detalhado do genoma humano indicaria, segundo ele, que há motivos para considerar as raças humanas como biologicamente distintas.

MANTRA

Os principais argumentos de Wade em favor dessa ideia são condensados numa espécie de mantra com três palavras-chave, que ele repete ao longo de todo o livro. Os dados de DNA mostram que a evolução humana é “recente”, “abundante” e “regional”, diz ele.

Ao afirmar isso, ele se apoia numa série de estudos bem conceituados os quais, de fato, indicam que os últimos 10 mil anos, desde a invenção da agricultura, foram um período importante para a evolução da nossa espécie.

É que, conforme os seres humanos se adaptaram à vida em grandes densidades populacionais, cultivando plantas e criando aninais, as populações explodiram, criando tanto novas variantes genéticas (mutações) quanto oportunidades para se adaptar a novos ambientes. Os grandes exemplos vêm da alimentação: muitas pessoas de hoje são capazes de digerir leite na vida adulta, capacidade que só apareceu depois que as vacas foram domesticadas.

Algumas estimativas sugerem que essa evolução “recente” foi tão “abundante” que afetou cerca de 15% do genoma humano. E também teria sido “regional”, já que cada população se adaptou à sua região – a mutação responsável pela digestão do leite, por exemplo, não surgiu entre os indígenas da América, que nunca domesticaram bovinos.

Com base nesses dados, Wade argumenta que não faz sentido esperar que tal variação do DNA também não tenha afetado coisas como o comportamento e a inteligência dos diversos povos, variáveis que também parecem ter componente genética.

Na visão dele, povos como os europeus, os chineses e os japoneses, por terem séculos ou milênios de vida em cidades, com economias complexas, teriam passado por um processo de seleção natural que, na média, favoreceu genes que ajudam as pessoas a viver nessas condições. Isso seria um dos motivos de sua predominância no mundo de hoje.

ESPECULAÇÃO

Nesse ponto, o livro se torna altamente especulativo, coisa que o próprio Wade reconhece – ninguém faz a menor de ideia de quais seriam esses genes “de Primeiro Mundo”.

“Não acho que haja algo de errado com a especulação, desde que você deixe isso claro ao leitor”, disse o autor à Folha. “Que outro jeito há de explorar o desconhecido? O que o meu livro faz é mostrar que é razoável acreditar que há uma base genética para o comportamento social humano, e em alguns casos conhecemos os genes associados a esse comportamento, como variantes associadas a níveis maiores de agressividade.”

Para Wade, as variantes genéticas mais importantes para o desenvolvimento não seriam necessariamente as ligadas à inteligência, mas as que favorecem a coesão social, como a capacidade de confiar em outras pessoas ou de punir malfeitores. Ele também faz questão de frisar que os genes são só parte de uma equação na qual a cultura tem grande peso.

“A genética não explica tudo. A seleção natural provavelmente influenciou a transição entre uma cultura agrária e a Revolução Industrial, por exemplo. Mas as regras sociais são, em grande parte, definidas pela cultura. Algumas culturas favorecem a livre iniciativa e a inovação, outras não.”

“A TROUBLESOME INHERITANCE: GENES, RACE AND HUMAN HISTORY” (“Uma Herança Problemática: Genes, Raça e História Humana”)

AUTOR Nicholas Wade

EDITORA Penguin Press

QUANTO 281 págs.,R$ 26,57 (livro eletrônico)

AVALIAÇÃO regular

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Compaixão primata https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2013/04/17/compaixao-primata/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2013/04/17/compaixao-primata/#comments Thu, 18 Apr 2013 01:22:14 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=212 A semelhança entre o Homo sapiens e os primatas não humanos é tamanha que abrange não só as características comuns a todos os membros dessas espécies como também o resultado de certos acidentes biológicos — disfunções de origem genética, por exemplo. O que nos leva ao caso de Azalea.

Azalea, uma fêmea de macaco reso (Macaca mulatta), nasceu num bando de sua espécie que vivia num zoológico, e seu DNA continha uma trissomia — ou seja, a presença de três cromossomos, em vez do parzinho “normal”. Era, para todos os efeitos, uma macaca com síndrome de Down, porque é exatamente essa anomalia cromossômica, nos trechos de DNA equivalentes em humanos, que leva à condição das pessoas com Down (mais precisamente, uma trissomia do cromossomo 21).

As semelhanças entre Azalea e seres humanos com síndrome de Down não terminam aí. Sua mãe ficou grávida dela numa idade relativamente avançada — o que, como sabemos no caso da nossa espécie, de fato aumenta a probabilidade de ter um filho com a trissomia do 21. A macaca teve dificuldades consideráveis em seu desenvolvimento motor. E, podemos acrescentar, também em seu desenvolvimento intelectual: cometia o erro de ameaçar o macho alfa (líder) do bando, coisa que macacos resos normais muito raramente ousam fazer.

Mas adivinhe só: nem o alfa nem os outros animais do bando costumavam punir Azalea por esse tipo de escorregada, embora a espécie em geral seja bastante intolerante em relação a transgressões da hierarquia socia. Aparentemente, sabiam que ela não fazia por mal e que não tinha capacidade de aprender quando devia ficar no seu canto. Ela morreu de causas naturais aos três anos de idade.

A história é mais uma das pérolas narrativas do primatólogo holandês Frans de Waal.

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Wilson e a religião https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2013/03/10/wilson-e-a-religiao/ https://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2013/03/10/wilson-e-a-religiao/#comments Sun, 10 Mar 2013 15:31:24 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/?p=86 No começo desta semana, dei uma sorte dos diabos e ganhei a oportunidade de entrevistar o americano Edward Osborne “E.O.” Wilson, 83, um dos meus heróis científicos. Foi por telefone — com a ligação caindo o tempo todo, diga-se de passagem — mas podia ter sido ao vivo. Só não fui até a cidade histórica de Lexington, Massachusetts, onde ele vive (e onde a guerra de independência americana começou em 1775) porque estava sem visto para entrar nos EUA e não daria pra tirá-lo em tempo hábil (loooser…).

Edward O. Wilson, véio gente fina

Pra quem não ouviu falar da figura, Wilson é provavelmente o sujeito vivo que melhor conhece as sociedades complexas de insetos, em especial as formigas, que são seu xodó. Também foi um pioneiro no uso da teoria da evolução pra entender o comportamento humano, fundando a chamada sociobiologia. E é uma voz poderosa em favor da conservação da biodiversidade, autor de textos de raro lirismo sobre o tema para o público em geral.

Os principais pontos da minha conversa com ele aparecem em reportagem no caderno “Ilustríssima” deste domingo (confira aqui: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1243711-cientista-de-harvard-ve-humanidade-mestica.shtml).

Mas nossa breve discussão sobre religião e ciência não coube (mesmo no latifúndio que é a “Ilustríssima”, nem tudo cabe), então resumo o papo aqui.

Perguntei a Wilson se ele não estava perdendo a paciência com a religião — em alguns de seus livros anteriores, ele soava mais conciliador. Resposta: “Meu problema com a religião é que existem incontáveis relatos da criação por aí. É impossível que todos estejam certos. E acho pernicioso quando as pessoas organizam suas vidas em torno de mitos de criação que simplesmente não refletem os fatos”.

Depois disso, porém, vêm as nuances. “Já a espiritualidade e a teologia são elementos importantes da natureza humana”, ressaltou Wilson. “Precisamos de ritos que marquem nascimento, casamento, morte e outras transições importantes de nossas vidas. Não tenho nada contra a prática religiosa, nem mesmo contra a crença religiosa, apenas contra a transformação dos mitos de criação em verdades absolutas.”

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