Neil Gaiman: “Homo fabulator”
Se você está se perguntando o que uma entrevista com o escritor e roteirista de quadrinhos (e de TV, e de cinema) Neil Gaiman está fazendo num blog de ciência, acredite, eu também estou.
De certo modo, no entanto, parecia a coisa correta a fazer. Meus colegas do caderno Ilustrada publicaram hoje a versão resumida da conversa que tive com Gaiman sobre seu novo livro, “O Oceano no Fim do Caminho”, um passeio assustador pelas memórias da infância (dele e de todos nós, de certo modo). E resolvi compartilhar a íntegra do papo neste espaço.
Faço isso não apenas porque os personagens de Gaiman povoam o meu cérebro desde que era moleque, mas também porque acho que há uma conexão indireta, porém importante, com a temática do nosso blog — daí o título pretensioso em pseudolatim deste post. Mais do que Homo sapiens, às vezes acho que somos o Homo fabulator – o animal criador de histórias por excelência. Existe, inclusive, uma crescente literatura da área de psicologia evolucionista tentando explicar por que o nosso cérebro evoluiu para inventar mundos que não existem (um dos expoentes dessa área é o americano Jonathan Gottschall).
Tem gente que acha que a ficção é mais uma ferramenta na eterna disputa de status entre seres humanos (status que tende a se refletir, lá na frente, em sucesso reprodutivo); tem quem aposte que tramas ficcionais são um poderoso simulador ético e social, que nos ajuda a aprender o máximo possível sobre como são as interações humanas e, no fundo, a sobreviver no mundo real.
São hipóteses bem difíceis de testar, mas acho que o que fica claro, no fundo, é a unicidade da experiência imaginativa humana, os padrões que se repetem de cultura para cultura, o sabor “mítico” difícil de definir, mas que a gente consegue detectar quando vê. Essa é a essência da obra de Gaiman e de outros grandes escritores, é a herança comum dos sonhos da nossa espécie. Bem, chega de blábláblá e vamos à entrevista.
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O escritor britânico que transformou em fenômeno a série de HQs “Sandman” recriou a própria infância na zona rural de Sussex na narrativa de seu novo romance, “O Oceano no Fim do Caminho”, que está sendo lançado simultaneamente nos países de língua inglesa e no Brasil no próximo dia 18.
Neil Gaiman, 52, afirma que essa é sua obra mais pessoal e que o narrador de sete anos de idade “é mais ou menos eu”, mas recusa o rótulo de autobiografia para o livro.
Pudera: a história envolve elementos como o protagonista que presencia seu pai fazendo sexo com a governanta e uma tentativa dessa mesma mulher (na verdade, uma criatura mágica que quer realizar todos os desejos humanos) de induzir o pai do menino a matá-lo, o que quase dá certo.
O garoto só se safa graças à ajuda de três misteriosas personagens: uma menina, sua mãe e sua avó. O lago da fazenda onde elas moram, diz a menina, é um oceano, enquanto a mais velha se lembra de como era o Universo antes do Big Bang.
Em entrevista à Folha, por telefone, Gaiman disse que não vê diferença de valor literário entre obras de fantasia e a ficção supostamente realista. “Sabe, ‘fantasia’ é um termo tão amplo que é difícil de definir. Para mim, aliás, cobre tudo, inclusive a ficção realista – tudo é fantasia. O que estamos tentando fazer é sempre a mesma coisa: falar de coisas grandes e verdadeiras contando mentiras.”
O escritor elogiou espontaneamente seus leitores brasileiros, dizendo que o Brasil foi o primeiro país a descobrir Sandman e que ele adoraria voltar para cá (esteve por aqui pela última vez durante a Flip de 2008).
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Folha – Até que ponto o sr. diria que seu novo livro é autobiográfico? Li que o incidente no qual um minerador sul-africano se suicida no carro da sua família realmente aconteceu…
Na verdade, o que acontece é que em 2003 meu pai me contou sobre esse caso do sul-africano que se matou, eu não me lembrava dessa história.
Não acho que isso signifique que o livro é autobiográfico. É algo que faz com que o livro seja pessoal, seja de longe o livro mais pessoal que eu já escrevi, mas não significa que os fatos ali sejam verdadeiros, mesmo no caso dos fatos que eu roubei da vida real.
Para entender isso melhor, imagine um mosaico. Cada quadradinho vermelho que forma o desenho é real, mas isso não quer dizer que o mosaico como um todo seja real. No caso do livro, a família não é a minha família verdadeira. O narrador de sete anos de idade é mais ou menos eu, mas não acho que, ao crescer, acabei me tornando a versão adulta daquele narrador.
É o tipo de escrita que eu não acho que ousaria colocar em prática se soubesse o que estava escrevendo. No começo, achei que estava só escrevendo um conto e estava feliz em transformar aquilo em algo muito pessoal. Ao terminar, vi que tinha escrito um livro acidentalmente. Quando mostrei o texto para minhas duas irmãs – veja que eu tenho duas irmãs na vida real, não uma, como no livro –, uma delas achou que era a melhor coisa que eu já tinha escrito, enquanto a outra ficou apavorada, dizendo que nada daquilo tinha acontecido…
Foi uma reação do tipo “Meu Deus, as pessoas vão pensar que o papai tentou matar você”?
Exatamente. No fundo, acho que eu queria contar para a minha mulher [a cantora americana Amanda Palmer] como eu era quando criança.
E quanto aos seus filhos? Quando estavam crescendo, também eram parecidos com o garoto tímido e enfiado nos livros que o sr. descreve?
Na verdade não, meus filhos [do primeiro casamento com a americana Mary McGrath] sempre foram muito parecidos com eles mesmos. Nenhum deles é tão maluco por livros quanto eu. Mike [o mais velho] foi descobrir os livros ao ler uma adaptação de “Guerra nas Estrelas” para o formato de romance, veja você, porque ele era louco por “Guerra nas Estrelas” quando pequeno. Já Maddy [a caçula] pretende ser jornalista.
Perdi as contas de quantas vezes figuras parecidas com a chamada Deusa Tripla – o conjunto formado por uma menina, uma mãe e uma velha, que segundo alguns estudiosos estariam presentes em várias mitologias – já figuraram na sua obra. E elas são muito importantes nesse novo livro. O sr. consegue explicar o porquê disso?
Se consigo explicar? Não, na verdade não consigo. É algo que parecia totalmente a coisa certa a fazer quando comecei a fazer [a série de quadrinhos] “Sandman”, quando me deram carta branca para usar uma série de personagens antigos da DC [a editora de HQs que publica “Batman” e “Superman”, por exemplo]. Eu achei uma delícia transformar as três bruxas dos antigos quadrinhos de horror da DC na Deusa Tripla, a Donzela, a Mãe e a Velha. Depois de fazer isso, acabei me dando conta de que esse era um jeito muito interessante de falar com o leitor e de criar personagens, e elas continuaram a morar dentro da minha cabeça. Não é algo que eu tenha planejado.
Só que no novo livro elas pertencem à família Hempstock, e já apareceram mulheres dessa família em livros como “Stardust” e “The Graveyard Book”. De onde veio a sua obsessão com esse sobrenome?
A família Hempstock é inspirada numa família que vivia numa fazenda no fim da estrada onde eu morava quando tinha dez anos, e eu me lembro de ter ficado maravilhado quando me disseram que aquela fazenda tinha sido listada no “Domesday Book” [famoso censo medieval inglês, feito no ano 1086]. Quando você é criança, com uma informação dessas na cabeça, começa a achar que aquela fazenda é igualzinha há mil anos, embora seja só uma fazenda comum com casa de tijolos vermelhos.
Aí eu pensei: não seria interessante que a mesma família também morasse lá ao longo de todos esses mil anos? E, por algum motivo, comecei a chamar essa família de Hempstock, embora até agora eu não tivesse uma história onde colocá-las. Por algum motivo elas são sempre mulheres, embora eu até mencione Hempstocks do sexo masculino no novo livro. Imagino que nos meus outros livros estamos falando de Hempstocks que se mudaram, casaram e deixaram descendentes em outros lugares.
O sr. acha que isso é um tema comum na obra do sr., essa visão quase reverencial das mulheres como seres poderosos e sábios?
Sabe, é engraçado, nesta manhã mesmo eu estava conversando com minha mulher e ela comentou: “Sabe, querido, a grande mensagem que fica de todos os seus livros é que você venera as mulheres” (risos). E acho que isso é verdade, em algum nível. As mulheres são incríveis, maravilhosas, dão-nos a vida, afinal de contas.
Levando em conta esses personagens recorrentes, o sr. já sentiu a tentação de amarrar todas as suas histórias num único Universo, criando a sua “Terra-média” ou a sua “Nárnia”, digamos?
Muitas delas são amarradas pela parte dos fundos, digamos, mas eu nunca senti esse impulso de juntar todas as coisas, acho que há o perigo de tudo ficar menos interessante dessa maneira. Eu sei que a história de “Stardust”, por exemplo, acontece no mesmo mundo de “Deuses Americanos”, e é claro que “Os Filhos de Anansi” também se passa nesse mesmo mundo. Imagino que esse também seja o caso de “O Oceano no Fim do Caminho”. Mas prefiro deixar essas conexões como bônus para as pessoas que conseguem encontrá-las e que se divertem com o fato de elas estarem lá.
Por que você escolheu Scáthach, o nome de uma donzela guerreira da mitologia gaélica, para batizar a vilã do novo livro?
Em parte porque eu estava escrevendo muito perto da terra da Scáthach original, a ilha de Skye [no norte da Escócia]. Tenho certeza de que a Scáthach original era uma mulher legal, maravilhosa, coordenava uma escola de heróis e tudo o mais, mas ela e a minha Scáthach apenas compartilhavam por acaso o mesmo nome.
Costumo ver mais menções suas a C.S. Lewis, autor de “As Crônicas de Nárnia”, do que a J.R.R. Tolkien. Ambos fundaram o círculo literário dos Inklings nos anos 1930, dando impulso à literatura fantástica. Lewis é o seu Inkling favorito?
Ah, eu adoro todos os Inklings, inclusive Charles Williams, injustamente o mais esquecido deles. Mas Lewis definitivamente é a pessoa que foi mais importante para mim quando descobri que queria ser um escritor. Lembro de ler “As Crônicas de Nárnia” com a idade que eu tinha em “Oceano” e ficar maravilhado e simplesmente feliz com a maneira como ele escrevia, a maneira como ele usava colchetes, parênteses e digressões. Aquilo me fez sentir que havia alguém por trás da história, uma pessoa escrevendo aquilo tudo. “Ora, eu posso fazer isso também!”, pensei.
Por outro lado, alguns dos seus textos parecem ser uma replica à visão de mundo um tanto puritana de Lewis.
Não acho que Lewis fosse puritano em nenhum sentido da palavra. Mas, lendo os livros dele para as minhas filhas conforme elas cresciam, algumas coisas me deixaram meio desconfortável, quando ele fala de Susan [uma das crianças protagonistas das histórias de Nárnia] depois que ela fica adulta, porque eu obviamente conhecia muitas mulheres adultas, com vida sexual e filhos, que eram pessoas excelentes e totalmente capazes de ser heroínas. Eu não gostava da insinuação um bocado estranha de que Susan tinha ido para o Inferno só por gostar de batom e de festas.
Num dos seus livros recentes para crianças, “The Graveyard Book” (“O Livro do Cemitério”), há uma breve aparição de uma espécie de grupo de super-heróis liderados por um vampiro e uma fêmea de lobisomem, a chamada Guarda de Honra. Alguma chance de um livro só para eles?
Sim, definitivamente quero escrever um romance sobre a Guarda de Honra, mas o problema foi o timing ruim. Assim que “The Graveyard Book” saiu, estávamos no auge do sucesso da série “Crepúsculo” e havia livros sobre vampiros por todos os lados. Eu não queria fazer o que todo mundo estava fazendo, então resolvi esperar.
No geral, como o sr. lida com as adaptações dos seus livros para o cinema? Eles tendem a decepcionar, a explicar demais as coisas num universo em que o mistério é importante?
Sim, e não sei se conseguiria acrescentar muito mais ao que você disse (risos). No caso de “Stardust”, por exemplo, é claro que eu prefiro o final que está no livro, mas o final na versão do cinema é um bom final de filme. E eu adoro o que fizeram com “Coraline”. O resumo da ópera é que você precisa achar um diretor muito bom, em quem você confia, e deixar ele fazer o que tem de fazer. No caso de “O Oceano no Fim do Caminho”, Joe Wright, que eu adoro, deve ser o diretor [os direitos do livro para o cinema já foram vendidos]. É um cara inteligente e é muito inglês, o que ajuda, porque não quero que o livro seja transformado num blockbuster de US$ 250 milhões, é um material mais intimista.
A literatura de fantasia, apesar do sucesso comercial, ainda sofre preconceito. Do ponto de vista literário, o que a fantasia é capaz de trazer para a literatura que outros gêneros não conseguem trazer, na sua opinião?
Sabe, “fantasia” é um termo tão amplo que é difícil de definir. Para mim, aliás, cobre tudo, inclusive a ficção realista – tudo é fantasia. O que estamos tentando fazer é sempre a mesma coisa: falar de coisas grandes e verdadeiras contando mentiras. E, se você der sorte e conseguir fazer com que aquilo pareça mítico, com o sabor de uma história verdadeira que você sente que sempre soube, mas tinha esquecido, então teve sucesso.
Obrigado pela entrevista e boa sorte com o livro.
Foi um prazer. Estou muito feliz que o livro esteja saindo ao mesmo tempo nos EUA e no Brasil. O primeiro povo a descobrir “Sandman” foram os brasileiros, a revista começou a sair por aí menos de um ano depois da publicação original e as edições eram lindas, assim como a tradução do Leandro Luigi Del Manto. Sem falar nas recepções que recebi aí, sempre muito entusiasmadas. Lembro-me de quando estiver na Flip em 2008, ao lado do meu amigo, o famoso dramaturgo Tom Stoppard, e a fila dos autógrafos à espera dele, um sujeito muito premiado, tinha umas dez pessoas, enquanto a minha chegava a 1.400! Tom disse “O Brasil te ama” e eu respondi “Eu é que amo o Brasil”.
Scáthach, nome de uma donzela guerreira da mitologia gaélica. É da turma que o ex ministro da defesa do Canadá fala.
http://www.youtube.com/watch?v=JN0hqnxVTLM
a fantasia darwinista conseguiu seu objetivo … afastar o homem de Deus.
e conseguiu também encaixa-lo em outra fantasia… deificando-se a si proprio, imagina-se o todo poderoso da propria existencia…
existencia essa já COMPLETAMENTE ARTIFICIAL
Não se afasta ninguém de algo que não existe…
na realidade Ele eh o unico q existe mesmo … viraremos poh e ele permanecer’a
Tem prova disso?
tenho , na Biblia, o Licro mais creditado do mundo .. mais dos que os milhoes de teses cientificas produzidas diariamente… e derrubadas um tantinho depois …
corrigindo … livro
Até que ponto o que imaginamos ou sonhamos pode ser considerado ‘não existente’ ou uma fábula? Em pleno século 21 quando se admite a possibilidade de multiversos, outras dimensões e universos paralelos, o que impede de acharmos que determinadas pessoas possam estabelecer contato com essas outras realidades por serem mais ‘sensitivas’, assim como há pessoas que enxergam melhor, ouvem melhor ou sentem melhor do que outras?
não consigo entender o que esse seu artigo e otros recentes tem a ver com o Esquema DarwineDeus. Absolutamente nada!
Não sei porque vc está fugindo do tema basico do blog.?
Perdeu a mão…