Madalena, você é meu bem-querer?

Reinaldo José Lopes
Madalena encontra o Jesus ressuscitado, em obra de Ticiano (Crédito: Reprodução)
Madalena encontra o Jesus ressuscitado, em obra de Ticiano (Crédito: Reprodução)

Uma das experiências mais deploráveis da vida deste pobre escriba foi passar quase 24 horas dentro de um avião, voando da Malásia para Buenos Aires via África do Sul (nem me pergunte), tendo como única companhia o livro “O Código da Vinci”, de Dan Brown. O horror! O horror!

Apresso-me a acrescentar que não estava lendo o romance por escolha pessoal (tinha de fazer uma matéria sobre os templários para a revista “Superinteressante” e citar o livro na dita cuja). Não sei o que me deu mais desgosto: a (falta de) habilidade literária de Dan Brown ou a picaretagem de insinuar que a trama foi toda “baseada em fatos reais”. Então, só pra deixar claro o que explicarei em detalhes nos próximos parágrafos: não há evidência NENHUMA de que Jesus tenha sido casado com Maria Madalena, minha gente.

Então, de onde veio esse bafafá todo? Fora o natural interesse moderno em faturar com afirmações polêmicas sobre o Nazareno, veio também de uma leitura seletiva e enviesada de certos misteriosos documentos do cristianismo primitivo, evangelhos apócrifos (não canônicos, ou seja, não aceitos pelas igrejas cristãs atuais) que parecem estar associados a correntes cristãs esotéricas do século 2º d.C. em diante.

Começando pelo começo para ficar tudo mais claro, quem provavelmente foi a Maria Madalena histórica, e qual sua relação com Jesus?

DISCÍPULA

O que vale para Maria Madalena vale, no fundo, para todas as seguidoras de Jesus. É virtualmente certo que Cristo tinha pessoas do sexo feminino entre seus discípulos ou colaboradores próximos, e que Maria Madalena estava entre eles, por dois motivos, segundo os historiadores. São critérios clássicos usados por quem estuda a figura do Jesus histórico: o critério da múltipla confirmação de fontes e o critério do constrangimento.

O primeiro desses quesitos, como o nome diz, envolve identificar dados parecidos em várias fontes independentes do primeiro século cristão (nem sempre isso significa dois evangelhos diferentes, por exemplo; sabemos que, em vários trechos de suas narrativas, tanto Mateus quanto Lucas usaram narrativas do Evangelho de Marcos, então teríamos de contar uma única fonte, e não três, nesses casos).

Analisando cuidadosamente a questão das fontes, historiadores como o americano John P. Meier, autor da série de livros “Um Judeu Marginal”, concluíram que ao menos três fontes diferentes (Marcos, João e a chamada tradição L, do Evangelho de Lucas) falam em seguidoras de Jesus, e o mesmo vale para a presença de Maria Madalena no séquito do Nazareno. Nos Atos dos Apóstolos (embora não em seu evangelho), Lucas chega mesmo a usar a palavra grega “mathétria”, ou seja, discípula (o masculino é “mathetés”).

E isso nos leva ao critério do constrangimento. É muito improvável que os evangelistas fossem simplesmente inventar a ideia de que mulheres seguiam Jesus, e ainda mais alguém, como Maria Madalena, de cujo corpo teriam sido expulsos “sete demônios”, como afirma Lucas, por exemplo. Isso porque ninguém iria querer fazer Jesus… passar vergonha, ou parecer um sujeito que se aproveitava das moças. No Mediterrâneo antigo, em especial num ambiente judaico, mulheres desacompanhadas, sem seus maridos, viajando junto com um monte de homens (que era basicamente o que as seguidoras de Jesus estavam fazendo), soaria extremamente suspeito, para não dizer lascivo. Mulheres religiosamente empolgadas, além do mais, tinham a reputação de não ter a cabeça muito no lugar no mundo antigo.

Nas primeiras décadas do movimento cristão, os historiadores detectam um esforço consciente dos evangelistas e de outros autores do grupo para fazer a Igreja primitiva parecer “respeitável” aos olhos dos demais habitantes do Império Romano. O fato de que, apesar disso, figuras como Maria Madalena foram preservadas pela tradição é um forte argumento a favor de sua historicidade.

Fora isso, o que sabemos sobre a moça? Bem, muito provavelmente, como diz seu apelido, ela veio de Magdala, um vilarejo às margens do mar da Galileia, ou seja, na região onde Jesus teria iniciado seu ministério público. Não, não há nenhuma evidência de que ela tenha sido prostituta, ou adúltera, ou qualquer coisa desabonadora (fora a história da expulsão dos sete demônios; Jesus parece mesmo ter atuado como exorcista, então esse caso pode de fato ter base histórica).

Estátua de Maria Madalena ao lado de Jesus crucificado (Crédito: Reprodução)
Estátua de Maria Madalena ao lado de Jesus crucificado (Crédito: Reprodução)

Outra coisa importante, é claro, é o papel das mulheres, e de Madalena em especial, como testemunhas da ressurreição de Jesus. Independentemente da historicidade dos relatos (e é claro que historiadores não têm como verificar se houve mesmo um milagre como a ressurreição, apenas se as pessoas acreditavam ou não nele), em várias fontes primitivas as mulheres, e Madalena em especial, estão entre os primeiros a ver seu Mestre ressuscitado. O relato mais forte a esse respeito está no encontro entre Maria Madalena e Jesus perto do túmulo no Evangelho de João.

De novo, critério do constrangimento: ninguém no século 1º d.C. ia inventar esse papel de destaque para uma mulher. Isso leva muitos historiadores a concluir que Maria Madalena era realmente uma figura importante entre os discípulos (e discípulas!) nos primeiros anos depois da morte de Jesus.

SEM CASÓRIO

Mas e o tal casamento? Bem, é sempre complicado argumentar “a partir do silêncio”, como se diz, das fontes. Mas o fato é que nenhuma fonte do século 1º, e raríssimas outras mais tarde, fazem qualquer menção a um Jesus casado e/ou com filhos, e muito menos a um relacionamento dele com Maria Madalena que não seja o de mestre e discípula.

Judeus do sexo masculino quase sempre eram casados? Sim, mas esse argumento geral não leva em conta o fato de que 1)Jesus era um tipo muito especial de judeu, um profeta itinerante e 2)havia precedentes na época para judeus celibatários, os ascetas do movimento essênio, moradores da região do mar Morto (embora a teologia deles, pelo visto, fosse bem diferente da de Jesus).

Resumo da ópera: não dá para saber com certeza, mas os dados disponíveis sugerem um Jesus solteiro, sem namoro com Madalena.

MAS E OS APÓCRIFOS?

Ah, os apócrifos! Bem-aventurados os que nunca precisaram abrir um, porque deles é o Reino dos… digo, porque eles são difíceis de interpretar. Bagarai.

A questão de fundo é que, com a possível (e questionada) exceção do Evangelho de Tomé, os textos apócrifos que mencionam Maria Madalena são todos 1)tardios, escritos um século ou vários séculos depois da morte de Jesus e 2)chegaram até nós em versões em copta, a língua egípcia da época do Império Romano. A cadeia de transmissão cultural, em resumo, é longa demais para termos esperança de que eles representem memórias históricas do que aconteceu com o Jesus e a Maria Madalena de carne e osso.

Além disso, eles representam um ponto de vista gnóstico, uma corrente de pensamento que se opunha a formas de cristianismo mais familiares para nós e que acreditava, entre outras coisas, que o mundo físico, inclusive o nosso corpo, foi criado por um deus mau e ignorante contra o qual o verdadeiro Deus eterno enviou como mensageiro o sábio Jesus. É, é bem esquisito — e o tipo da coisa que dificilmente ocorreria à primeira geração de seguidores de Jesus, ainda totalmente imersos no judaísmo, em sua maioria.

Nesse evangelhos, parece que a figura de Madalena é usada como campeã dos gnósticos, símbolo do verdadeiro sábio, contra as figuras dos apóstolos, representantes do cristianismo “oficialesco”, inimigos do gnosticismo.

Bem, dito isso, vamos aos textos. E veja que nenhum deles fala em casamento, salvo a última e questionável exceção.

EVANGELHO DE TOMÉ

O trecho começa com Pedro atacando Madalena. “Simão Pedro disse a eles: ‘Maria tem de nos deixar, pois as mulheres não são dignas de viver’.” Responde Jesus: “Eis que eu a guiarei para torná-la masculina, para que também ela se torne um espírito vivente, como vós, que sois homens. Pois toda mulher que se fizer homem entrará no Reino dos Céus”. Hein?

Interpretação possível: os gnósticos viam o nascimento (“causado” pelas mulheres) como algo ruim, pois representava a prisão de um espírito perfeito num corpo imperfeito. Daí, se uma mulher se tornar homem, deixa de ser mãe e, portanto, corta essa cadeia considerada malévola.

EVANGELHO DE FILIPE

Esse é ainda mais complicado porque está cheio de lacunas no texto original, que os especialistas tentam preencher com conjecturas. Abaixo, as lacunas são marcadas com colchetes.

“Três mulheres sempre caminhavam com o Senhor: Maria, sua mãe, sua irmã e Maria de Magdala, que é chamada de sua companheira. Pois ‘Maria’ é o nome de sua irmã, de sua mãe e de sua companheira.” Hmmm… OK.

E, em outro trecho, o mais polêmico:

“A Sabedoria, que é chamada de estéril, é a mãe dos anjos. A companheira [do Salvador] é Maria de Magdala. O [Salvador amava-]a mais do que [todos] os discípulos, [e ele] a beijava com frequência na sua [boca]. Os outros [discípulos]… disseram a ele: ‘Por que a amas mais do que a todos nós?’.”

EVANGELHO DE MARIA

Pedro diz a Maria Madalena:

“Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que às outras mulheres.”

EVANGELHO DA MULHER DE JESUS

Finalmente, no ano retrasado, fez barulho a descoberta do fragmento de papiro apelidado de “Evangelho da Mulher de Jesus” (leia o que escrevi a respeito na época aqui e aqui). É um fragmento mesmo, aparece apenas a expressão “minha mulher” e uma ou outra coisinha. De novo: o texto é muito tardio. E há sérias suspeitas, nesse caso, de que se trate de fraude.

Em resumo: é pouca coisa pra dar origem a um best-seller, gentil leitor.