Dinos, versão Clóvis Bornay
Conforme escrevi em reportagem publicada no último sábado nesta querida Folha, o visual dos dinossauros cada vez mais se parece com algo que poderia ter saído da cabeça de um carnavalesco. O último achado impactante nessa área vem da Sibéria, lugar onde vivia o herbívoro de pequeno porte Kulindadromeus zabaikalicus, que tinha tanto penas quanto escamas.
Aproveito aqui para publicar na íntegra os comentários dos pesquisadores que tiveram a gentileza de aceitar ser entrevistados por este escriba a respeito do bicho. Primeiro as damas, óbvio: confira o que me disse a jovem paleontóloga Taissa Rodrigues Marques da Silva, professora da Universidade Federal do Espírito Santo.
—————-
“Esse novo dinossauro é realmente muito, muito interessante. Segundo os autores, o Kulindadromeus zabaikalicus é conhecido por um número admirável de espécimes — seis crânios e centenas de esqueletos desarticulados, algo muito raro em paleontologia, o que, por si só, já tornaria o achado importante. Mas, claro, há a questão das estruturas tegumentares preservadas. Nesse aspecto, o Kulindadromeus é ainda mais excepcional, por possuir três tipos diferentes de escamas e três tipos diferentes de estruturas filamentosas.
Nos últimos anos, o achado de ornitísquios [um dos grandes grupos de dinossauros herbívoros, em geral bípedes] com estruturas filamentares tem causado um grande impacto na paleontologia. Declarações de que esses filamentos são penas ou protopenas são um pouco controversas, pois há vários fósseis de dinossauros com a pele, ou impressões dela, preservada, e que claramente não possuem filamentos tegumentares. A maioria dos paleontólogos prefere restringir o termo “pena” a dinossauros na linhagem das aves, especialmente quando é possível observar a presença de cálamo [a “raiz” dura da pena], bárbulas [as ramificações laterais da pena] e outras estruturas típicas de penas.
Em pterossauros, que são mais distantes de aves, os filamentos que recobriam o corpo receberam o nome de picnofibras no intuito de delimitar essa diferença e não possuíam uma estrutura tão complexa quanto as penas. Em dinossauros ornitísquios, até agora as estruturas conhecidas também eram apenas filamentosas. É bastante interessante que o Kulindadromeus possua estruturas tanto filamentosas quanto algumas compostas e sem um eixo central, o que, para os autores, lembraram algumas penas de contorno de aves. Graças a essa nova espécie, os limites entre o que são estruturas homólogas e análogas [ou seja, com origem evolutiva comum ou com origens distintas] começam a ficar menos definidos.
Os autores que descreveram o Kulindadromeus foram bastante diplomáticos nesse aspecto. “Protopenas” são estágios hipotetizados da evolução das penas, e é quase impossível termos certeza de que as estruturas da nova espécie representam um desses passos, mas certamente essa é uma contribuição importante. Apesar de os autores defenderem a hipótese de que os filamentos são equivalentes a protopenas, eles apresentam uma discussão bem interessante sobre o potencial de que essas estruturas tegumentares encontradas em vários répteis arcossauros [grupo que, além dos dinos, inclui ainda pterossauros e crocodilos] serem sim homólogas, apesar de não necessariamente serem idênticas, por potencialmente terem um background genético comum. Assim, e como sugerido por outros paleontólogos antes, todo o grupo dos répteis arcossauros teria um potencial genético de possuir estruturas na pele.
Alguns dinossauros teriam esses genes suprimidos e, portanto, não apresentariam essa cobertura. Basicamente, isso também significa que temos o potencial de ainda vir a encontrar muitas espécies de dinossauros com coberturas filamentosas, simples ou compostas. De agora em diante, um passo importante para confirmar que a presença de estruturas é ancestral em dinossauros seria encontrar filamentos tegumentares em dinossauros mais antigos, como no Triássico [período anterior ao Jurássico, que vai de 250 milhões a 200 milhões de anos atrás].
———-
Agora, com a palavra o paleontólogo Pascal Godefroit, do Real Instituto de Ciências Naturais da Bélgica, responsável por descobrir a espécie. Confira a pequena entrevista com ele.
Folha – No artigo, o sr. e seus colegas mencionam descobertas anteriores de penas em ornitísquios. O sr. diria que os dados desses artigos anteriores não eram suficientemente claros?
Monofilamentos simples já tinham sido encontrados num dinossauro de chifres basal, o Psittacosaurus, e no heterodontossaurídeo Tianyulong, ambos do Cretáceo Inferior da China. Mas não era possível demonstrar que essas estruturas bastante simples (elas mais parecem pelos simples) poderiam ser consideradas como os primeiros estágios na evolução das penas. No nosso artigo, descrevemos pela primeira vez estruturas mais complexas e compostas que, de fato, parecem bastante as penas primitivas dos dinos terópodes e as penugens das aves modernas.
O sr. diria que a versão mais primitiva dos dinossauros já envolvia algum tipo de cobertura semelhante a penas? Nesse caso, qual teria sido sua função original?
Por último, mas não menos importante, o duplo xará Reinaldo José Bertini, do Departamento de Geologia Aplicada da Unesp de Rio Claro, escreveu-me com algumas considerações e ressalvas sobre a minha reportagem e sobre o tema, que reproduzo com prazer e gratidão por aqui.
“Registrar que os ornitísquios “não deveriam ter penas” é um grande equívoco. Explico.O Tianyulong é um ornitísquio “ornitópodo” do Jurássico tardio da China, e o holótipo [fóssil que é usado como padrão para descrever a espécie] claramente exibe penas e/ou plumas. Adicionalmente, mesmo o Heterodontosaurus, também um ornitísquio “ornitópodo” do começo do Jurássico do sul da África, tem sido reconstituído com penas e/ou plumas. Esclareço: registro “ornitópodo” entre aspas por muito provavelmente ser um grupo parafilético, ou artificial.
Portanto, meu caro xará, era de se esperar que ornitísquios “ornitópodos” tivessem penas. Faz algum tempo que se considera, de maneira bastante sólida, que ornitísquios “ornitópodos” teriam penas e/ou plumas. Deveriam e efetivamente tinham penas e/ou plumas. O registro fóssil tem sido contundente a respeito.Lembre-se que saurísquios [grupo no qual se incluem os ancestrais das aves] e ornitísquios teriam uma eventual ancestralidade comum. Portanto, penas deveriam ocorrer eventualmente em toda a descendência.
Por fim, mesmo o Silesaurus, do Triássico [réptil que pode ter sido ancestral dos dinossauros ou membro primitivo de algum subgrupo deles], tem sido registrado com penas e/ou plumas. É claro que o Silesaurus tem uma posição filogenética [na “árvore evolutiva] controversa. Talvez seja um dinossauromorfo, ou seja, um representante daquele grupo ancestral comum entre saurísquios e ornitísquios. Mas, de qualquer maneira, comprova que penas são algo muito antigo.”