As raízes da violência religiosa
A escritora e ex-freira britânica Karen Armstrong, 70, é uma máquina de produzir livros densos e bem escritos sobre a história das religiões, e transita com facilidade impressionante entre as ideias das principais crenças do planeta, do budismo e zoroastrismo ao cristianismo antigo. Acabo de ler seu mais recente livro, chamado “Fields of Blood: Religion and the History of Violence” (“Campos de Sangue: Religião e a História da Violência”). Em tempos de Je Suis Charlie, o tema parece urgente. Segundo Armstrong, quais as raízes da violência cometida em nome de Deus, dos deuses ou dos santos?
Bem, lá vou eu tentar resumir um livro de 550 páginas em alguns parágrafos, mas o curioso é que variações do mesmo tema reaparecem direto ao longo da obra, e olha que Armstrong examinou um período gigantesco de tempo, da antiga Mesopotâmia aos atentados de 11 de setembro e a atual era da “Guerra ao Terror”. No fundo, no fundo, as causas da violência religiosa são duas, diz Armstrong:
1)O “casamento” muito estreito entre uma tradição religiosa e o poderio do Estado;
2)Mudanças sociais e políticas que encurralam uma tradição religiosa, levando à reação fundamentalista — uma tentativa de sobreviver a essas mudanças a qualquer preço.
É óbvio que o fator 1 foi muito mais importante no passado. É fácil falar de “separação entre Igreja e Estado” no mundo de hoje, mas ela conta de forma muito clara como, ao longo da Antiguidade, não fazia sentido em falar da separação entre religião e política porque não havia nem uma palavra específica para designar “religião”, para começo de conversa.
A atividade religiosa estava imbricada, “junta e misturada”, em todas as esferas da vida. Só para dar um exemplo, o mero ato de comer carne, uma iguaria rara no antigo Mediterrâneo, normalmente envolvia se banquetear com as sobras do sacrifício de um animal aos deuses — e isso tanto na Grécia Antiga quanto na Babilônia ou no antigo Israel. Governantes eram divinos ou, no mínimo, “filhos adotivos” da divindade, e por aí vai.
DE REVOLUCIONÁRIOS A REACIONÁRIOS
Nesse estado de coisas, é curioso o destino de quase todos os movimentos reformistas ou revolucionários que buscaram a primazia da Regra de Ouro — o célebre “Não façais aos outros o que não quereis que vos façam” — nas grandes religiões. A busca da não violência e do amor fraterno “evoluiu” de forma independente em movimentos tão diferentes quanto o confucionismo na China, o budismo e as muitas formas de hinduísmo na Índia, os profetas hebraicos e o movimento de Jesus no judaísmo e cristianismo primitivo etc.
Mas, uma vez que esses movimentos se tornaram dominantes em suas culturas, foram “fagocitados” — se é que eu posso usar uma metáfora da biologia celular — pela relação tradicionalmente próxima entre governos/impérios e a religião. E, na Antiguidade, governos eram duas coisas: máquinas de guerra e máquinas de extrair impostos da população. E isso não se faz eficientemente sem violência, como o leitor certamente é capaz de imaginar. Resultado: temos religiões “da paz” justificando a opressão e a violência. E, claro, sendo usadas para justificar ambições imperiais ou nacionais que pouco ou nada tinham a ver com Deus.
Beleza, esse estado de coisas funcionou mais ou menos até o século 18, na maior parte do mundo. E os fundamentalismos violentos modernos?
Acho que Armstrong acerta o alvo ao mostrar que muitos deles têm a ver com a opressão neocolonial, em especial em países de maioria muçulmana e hindu — do mundo árabe ao Paquistão e à Índia.
Nesses casos, tudo começou com o domínio de governos imperiais europeus, ou de seus lacaios ou sucessores locais, que tentaram impor uma modernização/secularização extremamente agressiva, “de cima para baixo”, sem levar em conta as tradições religiosas e culturais de cada local e, claro, os interessantes das populações dominadas.
Resultado: quem não conseguiu “surfar a onda” modernizante acabou se apegando a uma versão cada vez mais militante e intransigente de sua tradição religiosa como antídoto à dominação — e o resultado a gente andou vendo nas últimas décadas. O diagnóstico me parece convincente. É claro que é muito mais difícil saber qual o tratamento correto para a doença.
Para os interessados, eis o link de uma breve entrevista que ela me concedeu, por e-mail, tempos atrás.
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