A falácia dos elos
Não sei se vocês estão familiarizados com um simpático (só que não) personagem da mitologia grega conhecido como Hidra de Lerna. Esse monstrinho adorável, basicamente uma supercobra de muitas cabeças (algumas versões falam em sete, outras em nove ou até em 50 cabeças), foi uma das criaturas míticas que Hércules teria enfrentado ao longo de seus célebres Doze Trabalhos. O problema da Hidra era que, além de possuir um veneno potentíssimo, o bicho conseguia fazer renascer suas cabeças toda vez que Hércules – ou melhor, Héracles, sejamos puristas helênicos aqui – as cortava. É mais ou menos assim que eu me sinto quando vejo as pessoas contrárias à teoria da evolução retomarem o velho argumento de que não existem “elos perdidos”, ou seja, a ideia de que não é possível enxergar transições evolutivas entre um tipo de ser vivo e outro examinando os fósseis.
Não sou Héracles nem tenho comigo um Iolau (o companheiro do herói grego que queimava os tocos das cabeças com uma tocha para que eles não renascessem). Sei que a hidra da incredulidade em relação aos elos perdidos vai continuar renascendo, mas vou tentar fazer minha parte neste post para que, ao menos, as cabeças renasçam um pouco mais fraquinhas. Para ser mais específico, gostaria de argumentar que, justamente no caso da evolução da nossa espécie, é preciso forçar bastante a barra para sustentar a posição antievolucionista.
É ELO OU NÃO É ELO?
Primeiro, porém, um detalhe conceitual. Quando a gente fala de evolução humana, a expressão “elo perdido” é popularmente usada para falar do último ancestral comum – que tal adotarmos a sigla UAC? – de humanos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos na árvore da vida.
Trocando em miúdos: se recuarmos tempo suficiente, veremos que em dado momento, lá se vão uns 7 milhões de anos, as linhagens de seres humanos e chimpanzés eram uma linhagem só. Depois, essas populações divergiram, gerando ao menos duas espécies no caso dos chimpas e ao menos uma dezena no nosso caso (do nosso ramo da árvore só sobramos nós). Estritamente falando, essa população anterior à divergência é o tal “elo perdido” do ponto de vista humano.
É verdade que essa espécie não foi identificada até hoje. As fases iniciais da evolução da nossa linhagem, a dos hominídeos, são notoriamente difíceis de estudar, em parte por causa da relativa falta de fósseis, em parte porque as características dessas fósseis são naturalmente confusas – afinal, se o bicho está perto da divergência, é bem possível que tenha características “genéricas” que dificultam a tarefa de dizer se ele está do lado de cá ou de lá da separação de linhagens.
Mas é verdade também que, do ponto de vista do quadro maior da evolução humana, essa lacuna não é tão importante assim, em especial para corroborar a ideia de que descendemos de uma linhagem de grandes macacos africanos.
QUADRO MAIOR
Permita-me, dileto leitor, reforçar a expressão acima: pensar no quadro mais amplo é a chave. Os grandes macacos existem há 25 milhões de anos. Até 7 milhões de anos atrás, não há um único exemplo de bípede entre esses bichos. Daí por diante, na África – em especial na África Oriental, mas não só lá –, começam a aparecer múltiplos exemplos de criaturas que ainda possuem um padrão anatômico extremamente parecido com o dos grandes macacos de maneira geral – cérebro com um terço do tamanho do nosso ou menos, mãos e pés adaptados à vida nas árvores – mas com sinais de postura bípede, seja em detalhes do crânio, seja em modificações sutis na pelve e no fêmur, por exemplo.
A partir de 4 milhões e 3,5 milhões de anos atrás, essas tendências se cristalizam e levam ao aparecimento de um esqueleto totalmente bípede (sem o dedão do pé capaz de agarrar objetos, típico dos chimpanzés), mas ainda assim com um crânio e um cérebro profundamente “símios”. Com mais de 1,5 milhão de anos de evolução, o cérebro começa a aumentar de tamanho, chegando a metade ou dois terços do nosso no caso do Homo erectus, e o uso de ferramentas de pedra se torna mais fácil de detectar.
É claro que essa saga não apresenta uma progressão linear simples. Não temos certeza da sequência de eventos e das conexões exatas entre linhagens desses macacos bípedes – a árvore, em vez de se caracterizar por um tronco único, frequentemente lembra mais um arbusto retorcido.
O indiscutível, no entanto, é que há um claro padrão gradual de alterações anatômicas e comportamentais, cheio de “elos” conectando uma espécie a outra. Várias dessas amostras foram datadas de forma bastante confiável, mostrando que essa sequência tem um padrão temporal relativamente lógico. Não existe nenhum abismo anatômico claro entre espécies de hominídeos separadas por intervalos geologicamente “curtos” de tempo.
Em outras palavras: a nossa própria evolução é um dos exemplos mais bem acabados de que há, sim, uma enorme variedade de elos transicionais ao longo do processo evolutivo. Se quiser, você pode contestar isso – mas seria bacana, então, ouvir uma hipótese alternativa: como explicar a sequência? Por que espécies de primatas bípedes cada vez mais parecidas com o homem atual (do nosso ponto de vista) vão surgindo conforme nos aproximamos do tempo presente? Se não temos um fenômeno evolutivo aí, temos o quê?
O silêncio de quem se opõe à teoria da evolução me parece ensurdecedor. O máximo que eles conseguem fazer é redefinir o conceito de fóssil transicional de um jeito tão absurdamente exigente que, no mundo real, eu não contaria como fóssil transicional entre meu trisavô e meus (futuros, se Deus quiser) bisnetos. Assim não dá pra brincar, gente.
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