Dois anos de Francisco

Reinaldo José Lopes

Tem sido sensacional do ponto de vista jornalístico e pessoal acompanhar o pontificado do papa Francisco. Ele acaba de completar dois anos como pontífice, e tentei fazer um balanço desses 24 meses em reportagem para esta Folha. Como, pra variar, nunca cabe nada no jornal impresso, aproveito o espaço hiperdimensional (hehehe) do blog para publicar na íntegra as riquíssimas entrevistas que me foram concedidas por especialistas no tema.

Começo com as declarações sempre sensatas de Rodrigo Coppe Caldeira, da PUC de Minas Gerais.

1)Nos últimos meses, em especial durante a viagem às Filipinas, a impressão que ficou é que Francisco resolveu mostrar que em matéria de moral sexual nada mudou nem mudará, principalmente quando criticou a ideologia “de gênero”, disse que não ter filhos é egoísmo, reforçou a defesa da encíclica “Humanae Vitae”, que proíbe os métodos anticoncepcionais artificiais… é o papa tentando mostrar à Igreja mais conservadora que também pode confiar nele? Se sim, vai colar?

Francisco, que ainda não tinha tocado de maneira mais clara e direta na doutrina moral da Igreja em seus pronunciamentos, retomou alguns pontos da moral católica e as reafirmou. De fato, isso pode ter ressoado positivamente entre bispos mais conservadores e que veem a questão moral como um dos fatores de impacto na contemporaneidade. Deve ficar claro que as sensibilidades são muito distintas, ou seja, um bispo “moralmente conservador” pode ser socialmente progressista, ou o contrário, o que complica as análises. Por isso as dificuldades, mesmo que nos ajudem de alguma forma, na utilização desses conceitos para delimitar “ideologicamente” aqueles que participam da estrutura eclesial. Não acredito que seus pronunciamentos em torno da temática seja uma tentativa, conscientemente planejada, de agradar esses ou aqueles, mas de simplesmente reafirmar aquilo que traz o magistério da Igreja. Sobre a questão da ‘ideologia de gênero’, Francisco se demonstra bem próximo das perspectivas sobre o tema de Bento 16, que também fez duras críticas a ela. Aqui, as tentativas de certas interpretaçoes que visam instaurar uma profunda ruptura entre um papado e outro têm suas dificuldades. Aonde e como se afastam e se aproximam, eis a questão complexa e difícil que passa a largo daqueles que se movem unicamente por um “ideal” de Igreja.

2)Dá pra ter alguma noção clara do que aconteceu na primeira fase do sínodo da família e o que vai acontecer na fase deste ano? Tem gente achando que o papa lançou balões de ensaio mais ousados na expectativa de que todo mundo embarcasse na dele, e não esperava uma reação tão forte do campo tradicionalista. O que ele fará se tudo se mantiver polarizado com vantagem dos tradicionalistas — assumindo, claro, que ele tem uma posição de reforma ao menos em relação aos divorciados, o que afinal não dá pra saber?

Não, não dá. A primeira fase do Sínodo foi bem controversa e não temos elementos suficientes para afirmar qual foi a posição do papa na reunião, mesmo intuindo que, com seu discurso marcado pela perspectiva da misericórdia, parece tender para a perspectiva do cardeal Walter Kasper. Na verdade, devemos evitar o conceito “tradicionalista”, já que ele acabou por referenciar aqueles que negaram o Vaticano II e se tornaram cismáticos em 1988. Certamente, os mais conservadores nesse tema da família já demonstraram que não abrirão mão da forma como interpretam a questão, não aceitando a mudança proposta por Kasper.O que irá acontecer é uma incognita. Mas o que dá para vislumbrar é que o papa, mesmo deixando aberto o diálogo, sem querer controlá-los diretamente, numa situação de extrema polarização deverá se posicionar. Os bispos são “cum Petro, sub Petro”, ou seja, no final, a última palavra é dele.

3)No último consistório rolaram cardeais de Toga, da Etiópia, de Cabo Verde… por um lado isso mostra a disposição de globalizar cada vez mais o catolicismo. Por outro há quem veja um problema político porque esses cardeais vão chegar isolados e com pouca experiência de como as coisas funcionam em Roma. Logo, dificilmente virarão um “bloco Francisco” capaz de apoiar a visão do papa para a Igreja. Como você vê esse dilema?

Certamente que os novos cardeais, de novas áreas geográficas, trazem uma marca mais positiva, essa tentativa de fazer o catolicismo realmente católico, universal. Agora, sobre como os novos cardeais irão se posicionar no tabuleiro da Santa Sé no que diz respeito as reformas que Francisco impulsiona, é difícil saber. Os africanos que participaram das discussões do sínodo, por exemplo, formaram um importante bloco, junto daqueles vindos dos EUA, de reação às propostas mais ‘liberalizantes’ do ‘bloco Kasper’.

Berhaneyesus Demerew Souraphiel, por exemplo, da Etiópia, é presidente da AMECEA (Association of Member Episcopal Conferences in Eastern Africa), condenou duramente a união civil de pessoas do mesmo sexo. Isso não quer dizer que, devido a essa posição, ele não possa ter um olhar mais aberto sobre a questão dos sacramentos aos divorciados. No entanto, já se pode vislumbrar algo de suas posições morais. Sobre as posições burocráticas desses novos cardeais na máquina vaticana, de fato, eles podem ter dificuldades. As indicações do papa podem se tornar verdadeiros “tiros pela culatra”, já que os antigos curiais, pela experiência no manejo dos processos, podem dificultar as manobras dos novatos, de quem se espera um novo ar na estrutura que ajude nas reformas que Francisco visa encaminhar.

4)Pra terminar: você acha que o papa é deliberadamente ambíguo nas falas dele ou é só “estilo pastoral”?

Pode ser ingenuidade minha, mas não acredito que o papa seja deliberadamente ambíguo. Parece que Francisco é bastante livre. Isso sim. E a liberdade sempre causa inquietações naqueles que desejam enquadrar e rotular superficialmente as posições. No entanto, houve alguns episódios em que o Serviço de Informação Vaticano teve que vir a público esclarecer as posições do papa. Penso que seja uma questão do próprio fato comunicacional, que é sempre marcado pelo “entre” quem fala e quem recepciona a mensagem. Mas, claro, ele é o papa, e tudo o que fala tem um peso.

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