Bíblia na seção de ficção: pode, Arnaldo?

Reinaldo José Lopes
A personagem-título do livro bíblico de Ester: luxo e fantasia

Recebo do amigo, colega e ex-guitarrista da nossa banda Rafael Garcia (cujo blog “Teoria de Tudo”, se você ainda não conhece, deveria conhecer), uma notícia curiosa: nos EUA, a rede de lojas Costco teve de se desculpar com o público evangélico porque algumas das Bíblias que vendia vinham com a etiqueta “ficção” (leia a notícia em inglês aqui). Pergunta que não quer calar: era o caso de fazer escarcéu por causa disso?

Bem, como quase tudo na vida, a resposta é “depende”. Para começar, como qualquer fiel bem-informado deveria saber, existe uma variedade enorme de materiais dentro das capas das Bíblias modernas. São dezenas de livros diferentes, escritos em épocas diferentes, por autores diferentes, com gêneros literários diferentes. Não é à toa que o nome que usamos para essa coleção de obras da Antiguidade vem do grego “tá biblía”, literalmente “os livros”. Como dizia meu professor de grego, Henrique Murachco, uma particularidade das palavras gregas do gênero neutro, como “biblíon”, o singular de “biblía”, é que o plural delas funciona como coletivo — o que quer dizer que o significado de “Bíblia” está mais para “coleção de livros, biblioteca”. A diversidade está implícita nesse conceito.

Tendo isso em mente, acho que nenhum cristão ou judeu deveria ser considerado herege ou irreverente por se dar conta de que a Bíblia claramente contém ficção. O livro de Ester, por exemplo, é indiscutivelmente ficção histórica, ambientada durante um momento genérico do Império Persa — um império sobre o qual temos abundantes registros históricos, nenhum dos quais menciona uma rainha judia liderando um contra-ataque maciço dos israelitas contra seus inimigos antissemitas. (Fora o fato de que o livro foi deliberadamente escrito em tom de sátira, com um retrato forçado do luxo da corte persa e da burrice do Rei dos Reis, supostamente o mesmo Xerxes que levou uma esfrega dos gregos em 480 a.C.).

Também não há porque achar que o livro de Jó tenha o objetivo de retratar um evento histórico — trata-se de uma espécie de diálogo filosófico, mais ou menos no estilo do escrito pelo grego Platão, com uma moldura narrativa aparentemente mais antiga que o texto principal. E, claro, o próprio Jesus, nos Evangelhos, é relatado como um autor de narrativas de ficção com cunho moral: são as suas célebres parábolas. Quanto aos chamados livros históricos da Bíblia, a diversidade impera, mas o consenso entre estudiosos, inclusive os não religiosos, é que eles apresentam uma mistura de fatos históricos e interpretações teológicas, que precisam ser examinados caso a caso.

Voltando à questão de ordem: do ponto de vista dos gêneros literários, a Bíblia é inclassificável, por representar cerca de um milênio de história cultural — história essa fascinante, complicada e polifônica.