Sobre antas e DNA
Fazia anos e anos que, volta e meia, eu mandava um e-mail ou ligava para o paleontólogo Mario Cozzuol, da UFMG, para perguntar: “E aí, professor, e a nova anta?”. Cozzuol, um sujeito extremamente aberto e gentil, havia comentado comigo que tinha analisado esqueletos de uma série de antas do Brasil, e que os dados anatômicos apontavam para o fato de que se tratava de um bicho diferente da nossa tradicional Tapirus terrestris, até então considerada a única espécie de anta do território nacional.
Após muitas idas e vindas e a obtenção de dados genéticos que apoiaram a tese de o bicho ser uma espécie distinta, a publicação finalmente saiu, e eu finalmente tive o privilégio de escrever a respeito em reportagem na edição de hoje desta Folha. Bem-vinda, Tapirus kabomani!
Quando digo “privilégio”, não é só força de expressão. Fazia 150 anos que uma espécie de anta não era descoberta. E fazia mais de um século que uma espécie de perissodáctilo (todo o grupo de mamíferos de casco com número ímpar de dedos, o que inclui todos os equinos e os rinocerontes, além das antas) não era identificada pela primeira vez pela ciência. E, claro, descobertas de mamíferos de grande porte são, de maneira geral, absurdamente raras hoje em dia.
Conversei com outro autor da descoberta, o Fabrício Santos, da UFMG, sobre os critérios para classificar uma espécie separada. A especialidade do Fabrício são as análises genéticas, e eu perguntei, levando em conta o tempo recente de divergência das populações de antas sul-americanas — entre 300 mil e 600 mil anos –, se a separação em espécies realmente fazia sentido. O que ele me disse é extremamente instrutivo e interessante para entender como os biólogos classificam espécies hoje. Confiram abaixo.
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“Reinaldo, concordo plenamente com suas colocações, e por isso mesmo o Mario ficava muito bravo com meu ceticismo.
Os Tapirus sul-americanos são de origem e diversificação muito recente. Além disso, perissodáctilos de maneira geral têm muito poucas barreiras pré-zigóticas [para evitar o acasalamento entre espécies], quase todos cruzam com todo mundo, basta ver zebras, cavalos e jumentos. Todas as antas em cativeiro também procriam umas com as outras. Mas na natureza as coisas são diferentes, há um bom isolamento por questões ecológicas e comportamentais que não ocorrem no cativeiro.
Mas há quatro evidências muito importantes que reforçam a identidade da nova anta:
1 – a nova espécie é simpátrica [vive nas mesmas regiões] com T. terrestris. Se fosse alopátrica [vivesse em outras regiões] era fácil explicá-la como uma mera população diferenciada. Analisamos bichos de terrestris e kabomani da mesma área (sul do Amazonas, norte de Rondônia) e os terrestris dessas áreas se agrupam com terrestris do Pantanal, das Guianas e outras áreas da América do Sul, não com as vizinhas kabomani.
2 – houve uma concordância completa dos dados morfológicos e moleculares, i.e., bichos com morfologia diferenciada no crânio também formarma um clado [grupo] diferente no DNA mitocondrial.
3 – a T. pinchaque, adaptada aos páramos andinos, forma um grupo anilhado dentro de T. terrestris, a T. kabomani fica de fora dessa confusão. Ninguém contesta T. pinchaque como espécie diferente de T. terrestris, mesmo com esse resultado do DNA mitocondrial. A T. kabomani se separa por morfologia e pelos dados moleculares.
4 – há indícios de especiação [separação de espécies] ecológica. As áreas em que encontramos T. kabomani e onde suspeitamos que ela ocorre (registros fotográficos etc.) são todas áreas de campos amazônicos, áreas abertas, assim como descrito pelos indígenas, caçadores, por Theodore Roosevelt. Quando fomos à tribo dos indios Karitiana, eles guardam os crânios como troféus e eles separam para nós crânios das duas espécies, o que também coincidiu completamente com nossas análises morfológicas e de DNA.
Para detalhar um pouco mais a história natural dessa anta é que estamos com um novo projeto financiado pelo Boticário, para verificar a presença dela em outras áreas e continuar as análises morfológicas e moleculares. Ela está na nossa lista para fazer o genoma também.”
Que venha, então, o genoma da anta-pretinha!