Hominídeos mestiços

Reinaldo José Lopes

Quando estava me preparando para escrever sobre o sequenciamento do mais antigo DNA humano, com 400 mil anos (leia mais a respeito clicando aqui e aqui), decidi procurar o paleoantropólogo britânico Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres, um dos grandes nomes nessa área. Mal sabia eu que Stringer tinha preparado nada menos que um pequeno artigo para contextualizar todas as últimas descobertas sobre a fase final da evolução da nossa espécie. Abaixo, tenho o prazer de compartilhar com você, gentil leitor, a íntegra do texto do pesquisador. Confira!

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“Os últimos anos viram um crescimento tremendo do nosso conhecimento a respeito dos seres humanos antigos, graças à disponibilização de sequências de DNA deles. O primeiro grande avanço veio com a reconstrução de parte do genoma mitocondrial do fóssil usado para descrever a espécie neandertal, em 1997. O DNA mitocondrial, ou mtDNA, é uma parte pequena e atípica do nosso genoma, que é passada pela linhagem materna, de mães para suas filhas e filhos.

Já o genoma autossômico, muito maior, é herdado dos dois pais e, nos últimos três anos, vimos a reconstrução de genomas autossômicos inteiros de mais fósseis neandertais, e também de um osso de um dedo da mão fossilizado que foi encontrado na caverna de Denisova, na Sibéria. Esse fóssil revelou um tipo de ser humano diferente tanto dos neandertais quanto dos humanos moderos, embora mais aparentado aos neandertais. Entretanto, esse osso do dedo e dois grandes dentes molares da caverna de Denisova têm genomas mitocondriais que são muito mais diferentes do mtDNA de neandertais e humanos modernos. Isso ilustra o fato de que o mtDNA nem sempre traz os mesmos sinais de parentesco que o DNA autossômico.

Hominídeos espanhóis pintados num estilo Goya, digamos. Crédito: Javier Trueba/Madrid Scientific Films
Hominídeos espanhóis pintados num estilo Goya, digamos. Crédito: Javier Trueba/Madrid Scientific Films

O importante sítio de Sima de los Huesos (“poço dos ossos”, em espanhol), uma câmara no fundo de uma caverna em Atapuerca, no norte da Espanha, já revelou mais de 6.000 fósseis humanos, de cerca de 28 indivíduos. Argumenta-se que esses fósseis tenham idades de até 600 mil anos, pertencendo à espécie Homo heidelbergensis, mas já defendi que, considerando as características desses fósseis, que eles representam neandertais primitivos, e que é improvável que eles tenham mais do que 400 mil anos. Sima também contém muitos ossos de ursos-das-cavernas, os quais, recentemente, serviram como fonte dos primeiros dados de DNA antigo desse sítio. Agora, um fêmur humano fossilizado também produziu sequências de DNA, e a totalidade do mtDNA desse ossos foi reconstruída. Isso representa o mais antigo DNA humano já obtido, o que promete mais avanços na tentativa de entender as relações entre os vários grupos humanos dos últimos 600 mil anos.

Os fósseis de Sima apresentam características neandertais claras, o que cria a expectativa de que o mtDNA deles também seria muito próximo do de neandertais. Contudo, para aumentar nossa perplexidade, o mtDNA do sítio está mais próximo do dos denisovanos, uma população geograficamente muito distante da Espanha. Então, como explicar esse resultado?

Bem, como mencionei acima, o mtDNA é um componente pequeno e incomum de nosso DNA. Sabemos, a partir do estudo do mtDNA de humanos modernos e neandertais, que ambos os grupos possuem variações de mtDNA que refletem apenas os últimos 200 mil anos de sua evolução. Variantes anteriores devem ter sido perdidas por acaso em ambas as linhagens, porque as mulheres que carregavam essas variantes não tiveram filhos, não tiveram filhas, ou tiveram filhas que não tiveram filhas — de modo que suas linhagens mitocondriais se extinguiram.

De posse dessa informação, podemos tentar explicar porque o indivíduo representado pelo fêmur de Sima, e a sequência de mtDNA derivada dele, tinham um padrão denisovano, e não neandertal. Um cenário seria que as sequências de mtDNA encontradas entre os denisovanos e no fóssil de Sima foram derivadas de sequências antigas, que eram parte da variação ancestral encontrada na espécie H. heidelbergensis — por acaso, essas sequências teriam sido subsequentemente perdidas na linhagem dos humanos modernos na África, perdidas na linhagem neandertal na Eurásia ocidental depois da época dos fósseis de Sima, mas retida entre os denisovanos da Eurásia oriental.

Uma segunda possibilidade, mais complexa, é que uma espécie como o Homo antecessor (espécie essa conhecida a partir de sítios mais antigos de Atapuerca, com idade em torno de 800 mil anos), teria se reproduzido com o H. heidelbergensis  na Eurásia, passando seu mtDNA diferente adiante. Talvez esse mtDNA tenha sido perdido na linhagem neandertal depois da época do povo de Sima, mas teria sido mantido no ramo denisovano. Ou talvez tenham ocorrido eventos de hibridização separados, que introduziram sequências de mtDNA parecidas, mais primitivas, nos dois grupos, e talvez DNA autossômico também. Isso também poderia explicar o fato de que o genoma autossômico dos denisovanos aparentemente contém traços de hibridização com uma espécie humana mais antiga que os neandertais.”