Felinos mestiços

Reinaldo José Lopes

Um trabalho primoroso feito por pesquisadores brasileiros e publicado no fim do ano passado mostra como é complicada a realidade biológica por trás das definições de “espécie” que a gente normalmente usa. Em resumo, eles mostraram que três espécies de felinos selvagens da América do Sul na verdade são quatro espécies — e que genes costumam ser trocados com frequência entre esses bichos. Uma complicadíssima forma de “troca de casais” entre espécies, em suma.

Quem quiser ter acesso à pesquisa completa, capitaneada por Eduardo Eizirik, da PUC do Rio Grande do Sul, e por Tatiane Trigo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e assinada também por Alexsandra Schneider, Tadeu de Oliveira, Livia Lehugeur, Leandro Silveira e Thales Freitas, pode clicar aqui (infelizmente o acesso ao artigo científico é pago).

Pra entender esses estranhos amores felinos, vamos começar conhecendo nossos protagonistas na foto abaixo.

A)'Leopardus tigrinus', ou gato-do-mato-pequeno, do Sul e Sudeste; B)'L. tigrinus' do Nordeste; C)'L. geoffroy', ou gato-do-mato-grande; D)'L. colocolo', ou gato-palheiro. Crédito: Projeto Gatos-do-Mato - Brasil
A)’Leopardus tigrinus’, ou gato-do-mato-pequeno, do Sul e Sudeste; B)’L. tigrinus’ do Nordeste; C)’L. geoffroy’, ou gato-do-mato-grande; D)’L. colocolo’, ou gato-palheiro. Crédito: Projeto Gatos-do-Mato – Brasil

 

OK, só reforçando o que já pus na legenda, temos, seguindo as letras da imagem: A)Leopardus tigrinus, ou gato-do-mato-pequeno, do Sul e Sudeste; B)L. tigrinus do Nordeste; C)L. geoffroy, ou gato-do-mato-grande; D)L. colocolo, ou gato-palheiro. (OK, sou só eu que só consigo pensar no time de futebol chileno Colo-Colo quando vi o nome científico do último bicho? Bem, deixa pra lá.)

Como ficou um tanto óbvio pelas descrições acimas, achava-se que uma única espécie de gato-do-mato-pequeno tinha uma ampla distribuição no nosso país, da região Sul ao Nordeste, e chegando até partes da Amazônia e dos países ao norte do Brasil. Já o gato-do-mato-grande seria um bicho mais sulino, estando presente basicamente na região do Sul do Brasil, na Argentina e um pouco mais ao norte. E o gato-palheiro, além de estar presente também na Argentina e no Chile, por exemplo, invade vastas áreas de cerrado no nosso país.

Isso significa que as distribuições geográficas de todas as três espécies (na verdade quatro, como veremos) se interpenetram em vários lugares. Cria-se, portanto, a situação ideal para que surjam as chamadas zonas de hibridização — locais nos quais espécies proximamente aparentadas acabem cruzando entre si. Sim, gentil leitor, espécies diferentes às vezes se misturam na natureza, dadas as condições certas. E não estamos falando de algo tipo burro/mula — às vezes esse tipo de cruzamento produz descendentes férteis.

Bem, foi exatamente isso que a equipe brasileira descobriu estar acontecendo, depois de uma série de análises de DNA das três espécies. Para tentar apreender com o máximo de detalhes o fenômeno, eles escolheram com cuidado os chamados marcadores — regiões do genoma cuja análise pode trazer informações sobre o que se deseja estudar (pode ser só a genealogia, como neste caso, podem ser outras coisas, como o risco de desenvolver certas doenças).

Avaliando centenas de gatinhos (115 gatos-do-mato-grandes, 74 gatos-do-mato-pequenos e 27 gatos-palheiros), os pesquisadores analisaram, por exemplo, o mtDNA (DNA mitocondrial), nosso velho conhecido de blog, que está presente apenas nas mitocôndrias (as usinas de energia das células) e só é passado pela linhagem materna, de mãe para filha ou filho. Estudaram ainda os chamados cromossomos sexuais, o Y (aquele que só é passado pelo lado paterno, de pai para filho macho) e o X (que tanto machos quanto fêmeas têm). E, claro, regiões de cromossomos “comuns”. 

O resultado dessa trabalheira toda foi… uma doideira. Quem observa o DNA dos gatos-do-mato-pequenos e dos gatos-do-mato-grandes do Sul e do Sudeste vê uma hibridização extensa, com trechos de várias regiões do DNA de uma espécie enxertados no genoma da outra, e vice-versa. A mistureba é tamanha que animais identificados como membros de uma espécie com base no aspecto físico na verdade parecem ter mais DNA da outra espécie. No texto do artigo científico em inglês, os pesquisadores chegam a usar a expressão “hybrid swarm” (algo como “enxame híbrido”) para definir essa situação sui generis.

Quando se sobe um pouquinho no mapa, a situação fica um pouco menos confusa, mas ainda assim surpreendente. Simplesmente todos os gatos-do-mato-pequenos do Nordeste carregam mtDNA de gato-palheiro, assim como boa parte dos gatos-do-mato-pequeno do Brasil Central. E é só isso — não há outros sinais de hibridização. Por algum motivo que a gente ainda desconhece, a “troca de casais” nesse caso envolveu apenas o acasalamento de fêmeas de gato-palheiro com machos da outra espécie, e os filhotes cruzaram com a espécie do pai, não com a da mãe. Alguma incompatibilidade genética ou comportamental sutil talvez esteja por trás disso. O nome técnico desse fenômeno, a inserção de apenas poucos genes de uma espécie no patrimônio genético de outra, é “introgressão”.

E, finalmente, o mais esquisito: apesar das “puladas de cerca” com os gatos-palheiros, os gatos-do-mato-pequenos do Nordeste não querem saber de seus “primos” do Sul e do Sudeste, porque seu perfil genético é bastante distinto dos deles, apesar de serem classificados como membros da mesma espécie. Daí a proposta mais impactante do artigo: classificá-los, de fato, como espécies separadas. O gato-do-mato nordestino ficaria com o nome L. tigrinus, enquanto os do Sul-Sudeste passariam a ser L. guttulus.

Abaixo, os mapas que tentam resumir toda essa bagunça (infelizmente em inglês; tento traduzir abaixo).

Mapas mostram distribuição geográfica e cruzamento entre espécies
Mapas mostram distribuição geográfica e cruzamento entre espécies

À esquerda, temos a distribuição das espécies reconhecidas hoje: gato-do-mato-pequeno em vermelho, gato-do-mato-grande em azul, gato-palheiro em área hachurada. À direita, o resumo das hibridizações: cruzamentos muito comuns no Sul e no Sudeste (“gene flow” ou fluxo gênico), mtDNA de gato-palheiro chegando aos gatos-do-mato do Nordeste e do cerrado (“mtDNA introgression”) e, enfim, populações do Nordeste isoladas em relação a seus primos mais ao sul (“no gene flow” ou nenhum fluxo gênico).

Ufa. Resumo da ópera: além de uma nova espécie de felino brasileira que ninguém teria pensado em procurar se não fosse o DNA, esse tipo de trabalho deixa claro que, mesmo na natureza, é possível enxergar o nascimento de novas espécies quase em tempo real. Esse tipo de fenômeno deve ter sido a regra quando outras espécies estavam surgindo e se consolidando. Após milhões de anos, com mudanças ambientais e comportamentais, a barreira entre uma espécie e outra acaba se solidificando — mas, no começo, ela tende a ser permeável.