Um recém-chegado infernal
Considere este post como uma breve – brevíssima, aliás – história do Demônio, gentil leitor. Meu objetivo nos parágrafos abaixo é mostrar como a figura do inimigo de Deus se desenvolveu historicamente nas Escrituras judaicas e cristãs. Sendo mais específico, as evidências literárias e históricas que temos à nossa disposição – e elas são bastante incompletas, deve-se admitir – indicam que a crença num oponente sobrenatural do Criador é relativamente tardia na tradição religiosa israelita. Estamos falando de um recém-chegado infernal, em suma.
Antes de continuar, um parêntese (que não deveria ser necessário, mas é): ao falar do Coisa-Ruim, deixo claro que me atenho a questões literárias e históricas, ou seja, à maneira como a crença na figura de Satanás foi se desenvolvendo e pode ser detectada nos escritos antigos. Não está em questão aqui a existência ou inexistência dessa figura do ponto de vista teológico. Nossas crenças não vêm ao caso aqui – vamos brincar de agnosticismo por razões metodológicas por enquanto. Beleza?
Avante, então.
Bem, para começo de conversa, você talvez esteja achando um absurdo eu afirmar que a crença no Cramulhão apareceu tarde na cultura judaica sendo que os primeiros capítulos do livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia, colocam logo de cara a famosa narrativa na qual Adão e Eva, “nossos primeiros pais”, como dizemos os católicos, caem no engodo da serpente do jardim do Éden e desafiam a Deus. Essa serpente é obviamente o Cão, certo?
Devagar com o andor, gentil leitor. Tente ler a narrativa do Gênesis sem os óculos teológicos de 2.000 anos de cristianismo. Ninguém sabe muito bem quando a história da serpente foi escrita – a data tradicional é por volta da época do reinado de Salomão (950 a.C.), tem gente que hoje acha que a história vem do período durante ou pouco depois do exílio dos judeus na Babilônica (século 6 a.C.) –, mas o fato é que se trata de algo escrito vários séculos antes de Jesus. E o que chama a atenção é que em nenhum momento a ameaça da serpente é descrita em termos sobrenaturais.
Ou seja, no sentido original do Gênesis, a serpente é puramente um animal falante – e só. Ela é descrita simplesmente como o animal mais astuto do Éden. E, quando sua trama é finalmente exposta pelo Senhor Deus, sua punição é a que um animal receberia: rastejar para sempre, comer pó. A ideia de uma rebelião de anjos contra Deus, do mais poderoso deles sendo punido com a queda rumo ao Inferno, com o sujeito jurando vingança contra a humanidade e arquitetando o pecado original – tudo isso está a anos-luz da narrativa da serpente.
Tanto é assim que, depois dessa primeira aparição, a serpente e, claro, o Demônio, continuam soberbamente ausentes de quase todo o resto do Antigo Testamento. Tudo indica que o monoteísmo judaico, em sua forma “clássica” – a dos editores que deram forma ao Antigo Testamento hebraico, provavelmente no exílio babilônico – tinha sérias dificuldades filosóficas de aceitar a figura de um Demônio ou demônios porque isso simplesmente diminuiria a majestade de Deus em seu papel de única divindade. Afinal, se Deus é único e absoluto, como um anjo rebelde poderia ter tanto poder sobre a Criação? Como diz Christine Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da Universidade Yale, “na Bíblia hebraica ninguém pode sair dizendo ‘Foi o Diabo que me fez fazer isso’ ”.
O leitor mais familiarizado com o Antigo Testamento talvez já tenha em mente três exceções importantes: os livros de Jó, Zacarias e o Primeiro Livro das Crônicas. Vamos caso a caso, mas é crucial mostrar o que esses três exemplos em comum.
QUESTÃO DE ARTIGO
E o que eles têm em comum é um pronome definido. Satanás nesses textos é ha satan, “o satã”, ou melhor, para tentar traduzir o hebraico de forma mais precisa, “o adversário” ou, melhor ainda, “o promotor”, “o acusador”. Não é um nome próprio, mas uma função subordinada a Deus e permitida por Ele. Assim, no livro de Jó, o justo sofredor por excelência (bem, antes de Jesus surgir, claro), “o satã” é responsável por sugerir a Deus que a boa-fé de Jó precisava ser testada com uma série de infortúnios, e Deus aceita a opinião de seu “assessor”,
“No livro de Jó, ‘o satã’ é simplesmente um membro do Conselho Divino, um dos servos de Deus cuja função é investigar os acontecimentos na Terra e agir como uma espécie de promotor, trazendo os malfeitores à justiça. Quando Javé se gaba de seu piedoso servo Jó, o anjo-promotor simplesmente se pergunta, seguindo sua função, se a fé de Jó é sincera”, diz Christine Hayes.
Da mesma forma, no livro de Zacarias, o sumo sacerdote judeu é julgado diante de Deus, com “o satã” como promotor e outro anjo como advogado de defesa (por sorte, o pobre Josué se sai bem nessa).
Terceiro e mais polêmico exemplo: no Primeiro Livro das Crônicas, afirma-se que “o satã” incitou o rei David, já no apagar das luzes de seu reinado, a realizar um censo em território israelita e incorrer na ira divina, levando ao surgimento de uma praga que dizimou a população (não fica muito claro por que o Senhor é contra censos, mas deve ter a ver com soberba, isto é, a ideia de que só o tamanho populacional, e não a ajuda divina, traria poder a Israel).
Detalhe polêmico: essa história é relatada anteriormente, no Segundo Livro de Samuel, só que na primeira versão é o próprio Deus que incita o censo e depois pune a nação israelita. É provável que os redatores das Crônicas tenham ficado incomodados com a ideia de um Deus aparentemente caprichoso e resolveram atribuir a armadilha ao “promotor” da corte celeste.
E é isso – nada sobre queda de anjos ou reinos infernais no Antigo Testamento hebraico (fora algumas passagens poéticas altamente difíceis de interpretar no livro do profeta Isaías, mas que pelo visto são alegorias políticas e não versam sobre “o satã”).
Como, então, “o satã” virou Satanás nas correntes judaicas que dariam origem ao cristianismo? A resposta curta é que ninguém sabe ao certo. Uma hipótese que faz sentido, mas que é só uma hipótese, é que os séculos de dominação persa do Oriente Médio (de meados do século 6 a.C. ao fim do século 4 a.C.) acabaram trazendo para a religião judaica a influência das crenças dualistas da Pérsia, segundo as quais o Universo era um campo de batalha entre um deus bondoso e um deus malévolo. Ao incorporar parte desse cenário, certas correntes do judaísmo teriam reinterpretado a figura do Promotor como a de um arqui-inimigo.
É difícil de apontar quando e como essa transição aconteceu exatamente. Ficamos sem a “certidão de nascimento” do Diabo, portanto. Não que eu queira botar as mãos num documento desses…