DNA indígena: versão sem cortes
Pra quem ainda não conferiu minha reportagem do dia na Folha, é com prazer que apresento ao gentil leitor a versão sem cortes (porque realmente eu preciso aprender a escrever menos e dar menos trabalho à querida chefa interina Mariana Versolato, valentemente cortando a minha verborragia). Eis o texto.
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Há 12 mil anos, uma família de caçadores-coletores perdeu um bebê de um ano e meio de vida e o enterrou, com adornos feitos de chifre de cervo, onde hoje é o Estado americano de Montana. Talvez não fosse um grande consolo para eles, mas seus genes hoje estão presentes no DNA de boa parte dos habitantes nativos das Américas, entre os quais os índios brasileiros.
Essa é a principal conclusão que vem do sequenciamento (“leitura”) do genoma do bebê do sexo masculino, o mais antigo de um habitante do continente americano a ser totalmente decifrado. O estudo está na edição desta semana da revista científica “Nature”.
As descobertas reforçam a ideia de que, no fim da última Era do Gelo, pioneiros vindos da Sibéria foram os primeiros seres humanos a pisar no continente, mas indicam que essa história ainda está cheia de detalhes complicados e difíceis de interpretar.
O time que “leu” o genoma do menino encontrado no sítio arqueológico de Anzick é liderado pelo dinamarquês Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, um dos principais especialistas do mundo em DNA antigo. Curiosamente, a americana Sarah Anzick, em cuja propriedade os restos mortais foram desenterrados em 1968 (daí o nome do sítio), também assina o estudo.
Em resumo, o que os pesquisadores fizeram foi comparar as “letras” químicas do DNA do bebê com as de 143 populações do mundo todo, entre elas tribos do Brasil, como os guaranis, caingangues e caritianas. A semelhança com os grupos indígenas atuais foi impressionante, declarou Willerslev em entrevista coletiva por telefone.
“Na verdade, pode-se dizer que a família dessa criança é ancestral direta de cerca de 80% dos indígenas atuais. É como se fosse um elo perdido”, afirma ele.
O estranho, no entanto, é que, apesar de ter sido encontrado em Montana, perto da fronteira americana com o Canadá, o menino parece ter parentesco mais próximo com membros de tribos da América do Sul e da América Central.
“Para ser honesto, acho que ainda não sabemos como explicar isso”, afirma Willerslev. Pode ser que, ao chegar às Américas, os ancestrais dos índios atuais tenham se dividido em dois grandes grupos, ou essa separação poderia ter ocorrido ainda na Ásia, com a ocorrência de múltiplas migrações.
NADA EUROPEU
Os dados devem ajudar a sepultar uma hipótese aparentemente maluca, mas que chegou a ganhar adeptos entre os arqueólogos americanos nas últimas décadas: a de que o povo do bebê, membros da chamada cultura Clovis, descenderia de europeus da Idade do Gelo, os quais teriam atravessado o Atlântico para chegar à América do Norte.
Para os defensores da ideia, pistas arqueológicas – basicamente o formato de pontas de lança e outros artefatos – sugeriam conexões culturais entre o complexo Clovis e os europeus da Idade da Pedra. Com a análise de DNA, ficou bem mais difícil defender essa tese.
A pesquisa também chama a atenção por outro aspecto: os cientistas fizeram questão de entrar em contato com grupos indígenas da região onde o menino foi encontrado, como os lakota (mais conhecidos como sioux) e os crow, para saber se eles não se opunham à análise do genoma. Os índios aceitaram as conclusões do estudo, mas pediram também que o bebê voltasse a ser sepultado no solo ancestral das tribos, o que deve acontecer ainda neste ano.
“Está na hora de devolver a criança à terra”, declarou Sarah Anzick. “O estudo mostra o que nossos ancestrais já sabiam: sempre estivemos aqui”, disse Shane Doyle, membro da tribo crow que também assina o estudo.
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