Maria e o homem chamado Pantera

Reinaldo José Lopes

Seria este o verdadeiro pai de Jesus de Nazaré?

Tibério Júlio Abdes Pantera (22 a.C.-40 d.C.), arqueiro do Exército romano, nascido em Sidon (atual Líbano)
Tibério Júlio Abdes Pantera (22 a.C.-40 d.C.), arqueiro do Exército romano, nascido em Sidon (atual Líbano)

Tibério Júlio Abdes Pantera (22 a.C.-40 d.C.), arqueiro do Exército romano, nascido em Sidon (atual Líbano), enterrado em Bingerbrück, atual Alemanha (esses romanos gostavam de viajar). O sujeito que, segundo uma hipótese do historiador americano James Tabor, poderia ter estuprado/seduzido Maria e gerado um filho ilegítimo, condição depois ocultada pelas narrativas de concepção divina nos Evangelhos. Faz algum sentido do ponto de vista histórico?

Resposta curta: muito provavelmente não. Mas vamos entender melhor essa maluquice toda.

A acusação de ilegitimidade, a tentativa de chamar Jesus de “bastardo”, é relativamente antiga — mas não tão antiga quanto os Evangelhos, até onde sabemos. A primeira referência à ideia parece vir dos escritos de um autor pagão anticristão, Celso, que fez essas afirmações em 178 d.C. (quase 200 anos depois do nascimento de Jesus).

O texto original de Celso se perdeu, mas o teólogo cristão Orígenes decidiu tentar refutar ponto por ponto as ideias do escritor pagão na obra “Contra Celso”, de 248 d.C. E, para isso, precisou explicar quais eram as visões do tal Celso sobre o nascimento de Jesus.

Ora, o escritor pagão, segundo Orígenes, dizia ter ouvido de um judeu seu conhecido a história de que, na verdade, Maria teria cometido adultério com um soldado romano chamado Pantera antes de ir coabitar com seu noivo carpinteiro. Pela traição, teria sido abandonada por ele. Após dar à luz em segredo, passou a criar o menino Jesus, o qual, após uma temporada no Egito trabalhando como operário e mágico (é, eu sei, combinação estranha), teria começado a dizer que tinha origem divina.

O velhaco Pantera não aparece apenas na obra de Celso, porém. Textos judaicos posteriores, reunidos no Talmude, a vasta compilação de opiniões legais, narrativas e outros materiais religiosos, falam de um tal “Ben Pendera” ou “Ben Pantere” (filho de Pantera), supostamente um herege e curandeiro judaico, às vezes explicitamente identificado com Jesus dependendo da edição do Talmude. É dificílimo datar a miscelânea de textos do Talmude, mas é mais provável que as histórias sobre “Ben Pendera” datem do ano 250 em diante — talvez bem em diante, tipo ano 500.

Finalmente, em meados do século 19, arqueólogos alemães acham o monumento funerário de Pantera. Tudo o que sabemos é que o arqueiro provavelmente prestou serviço militar na região da Palestina antes de ir para a Alemanha e que ele provavelmente tinha origem semítica (poderia ser fenício ou mesmo judeu), dado o nome “Abdes”. Tanto no tempo quanto no espaço, parece ter sido mais ou menos contemporâneo de Jesus.

Por que diabos, então, esse não é “o” Pantera? Por que Jesus não poderia ser filho do hómi, afinal? Bem:

1)Primeiro, o nome era comum, inclusive na região da Palestina e entre soldados romanos, e foi comum durante vários séculos (pode até ter sido a origem da lenda, já que “Pantera” = “soldado romano genérico”).

2)As histórias sobre o nascimento ilegítimo são todas muito tardias. Pouco antes de Celso escrever, outros teólogos cristãos tinham debatido com judeus sobre o nascimento de Jesus, e a acusação de ilegitimidade não aparece em nenhum momento.

3)Há indícios interessantes de que a história contada por Celso é uma espécie de paródia maldosa da narrativa do nascimento de Jesus em Mateus, e só no Evangelho de Mateus. Só o Primeiro Evangelho, por exemplo, diz explicitamente que o noivo de Maria era um carpinteiro, afirma que José tinha ficado perturbado com a notícia da gravidez de sua prometida e afirma que Jesus passou uma temporada no Egito quando menino (em Mateus, para fugir do rei Herodes).

4)Não é à toa que Mateus seja o alvo desse tipo de sátira judaica, já que era, no segundo século depois de Cristo, o evangelho mais popular e o mais influenciado pela própria origem judaica de Jesus em seu texto. Era o alvo mais próximo, em resumo.

Finalizando: não parece fazer muito sentido usar as histórias sobre o “filho de Pantera” como fonte sobre a paternidade do Jesus histórico. Na verdade, a origem tem a ver com uma tática que acontece desde que o mundo é mundo quando a ideia é desqualificar adversários políticos ou religiosos: atacar a reputação dos sujeitos — ou a da pobre mãe deles.

Ah, e antes de partir, um agradecimento ao leitor Ivan de Castro, que me sugeriu este post.

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