Você tem vergonha de ser macaco?

Reinaldo José Lopes
Mãe chimpanzé com filhote (Crédito: Creative Commons)
Mãe chimpanzé com filhote (Crédito: Creative Commons)

É comum as pessoas reagirem com uma mistura de asco e escárnio à ideia de que somos parentes absurdamente próximos dos chamados grandes macacos, e em especial de duas espécies de primatas africanos, os bonobos e os chimpanzés. “Isso aí é uma macaquice! Eu não sou macaco! Vai comer banana!” — e por aí vai.

Gostaria, do fundo do coração, que quem reage dessa maneira tivesse a oportunidade de passar por uma experiência capaz de mudar a vida de qualquer pessoa: ficar frente a frente com um grande macaco. Não digo simplesmente ver um bicho desses em zoológico, porque criaturas de vida social e mental tão complexa quanto os chimpanzés muitas vezes saem completamente dos eixos quando colocados em jaulas pequenas, sem companheiros de espécie ou um ambiente estimulante para brincar. Os coitados que precisam passar por isso acabam se tornando o equivalente de uma criança humana criada numa solitária — ou seja, não é nada bonito vê-los. É sórdido, infelizmente.

Não, o que eu realmente desejo é que quem tem vergonha de ser macaco tenha a chance de ver nossos primos de primeiro grau em situação digna, como eu tive a sorte de vê-los num santuário de chimpanzés no interior de São Paulo. Ou, para quem for ainda mais sortudo do que eu, que consiga vê-los na natureza (aliás, o tique-taque do relógio está acelerando nesse sentido; hoje restam só 100 mil chimpanzés no meio selvagem, e tudo indica que esse número ficará ainda menor nos anos que vêm por aí). Nos dois casos, grandes macacos que vivem num ambiente estável e decente, entre membros de sua própria espécie, podem ser vistos pelo que realmente são: quase gente, no bom e no mau sentido.

As duas experiências que tive no santuário foram particularmente instrutivas, porque os bichos estavam suficientemente habituados à presença humana para que fosse possível chegar realmente perto deles (outra coisa que é impossível em zoológicos). E foi aí que a porca torceu o rabo. Eu tinha toda a preparação teórica para saber o que esperar de um chimpanzé, e o significado da relação deles conosco como ramos vizinhos da Árvore da Vida, mas nada me preparou para o olhar das criaturas, para as expressões faciais. Para o toque das mãos.

LINHA DA VIDA

Acho melhor me concentrar nessa experiência e apenas repassar de leve alguns pontos mais “científicos” da semelhança, primeiro porque não vou conseguir mesmo repassar toda a imensa massa de literatura especializada mostrando como somos parecidos, segundamente porque acho que a experiência direta é muito mais forte do que os dados brutos. Por exemplo: é relativamente fácil sair por aí repetindo números de semelhança genética (uma identidade em torno de 95% entre as sequências de DNA da espécie deles e as da nossa), mas ninguém está preparado para o fato de que, se uma cigana quisesse, ela poderia ler as mãos de um grande macaco, porque as linhas que estão ali são quase indistinguíveis das que existem numa mão humana (não que isso ajudasse a prever o futuro do pobre bicho, claro). Ou para o fato de que, apesar do polegar bem mais curto que o nosso, aquilo é claramente uma MÃO, não uma pata.

Da mesma maneira, qualquer um pode ler sobre a longa infância e adolescência dos chimpanzés, a ligação profunda entre mãe e filhote por anos a fio, como adoções de órfãos às vezes ocorrem, a maneira como bebês da espécie aprendem técnicas de construção de ferramentas observando os mais velhos — mas nada, absolutamente nada, prepara o sujeito para o fato de que bebês chimpanzés se mexem exatamente da mesma maneira que crianças humanas, com a mesma hesitação curiosa e desajeitada. Não te prepara para descobrir que eles gostam de brincar de esconde-esconde, nem para a energia maníaca e barulhenta que eles tiram de dentro de si para brincar de maneira geral, deixando você gargalhando e completamente sem fôlego quando eles pulam no seu colo.

Falando do “lado negro” — o qual, é bom lembrar, nós também temos em abundância –, relatos sobre as maquiavélicas interações políticas no interior de grupos de chimpanzés, sobre os combates em torno do desejado posto de macho alfa, sobre as “guerras” de extermínio entre bandos com territórios de vizinhos, praticamente caem na cabeça de qualquer um que passar pela seção de livros sobre evolução de qualquer livraria. Mas faz uma diferença absurda ver um macho adulto de pelos arrepiados, correndo atrás de um fujão enquanto grita, a sensação de PODER que emana da figura musculosa, feito Aquiles correndo atrás de Heitor em torno das muralhas de Troia.

Ver tudo isso e ainda assim achar que é só impressão, que é ilusão de óptica, que gente é gente e macaco é macaco — bem, tem hora que começa a parecer meio muito. Soa como tapar os ouvidos com as duas mãos e ficar dizendo “lálálálá, não estou ouvindo, não estou ouvindo”. Soa como orgulho injustificado do primo rico que se recusa a cumprimentar o primo pobre na rua.

E O SENHOR DEUS COM ISSO?

OK, essa foi a parte puramente secular (no sentido “não religioso” do termo) da minha argumentação. O que tenho a dizer a seguir vale só para quem é religioso e cristão como eu (uau, surpresa, sim, eu sou cristão, da subespécie católica, pra quem não sabe; leia por favor a minha nota biográfica clicando em “Perfil completo” no canto superior direito do logotipo do blog). Se você não tem crença religiosa nem se interessa em discutir esse tipo de tema, pode pular os próximos parágrafos à vontade.

Deixando de lado debates infrutíferos sobre a verdade literal dos textos bíblicos, acho que é seguro, do ponto de vista teológico, dizer que a fé cristã afirma algumas verdades indiscutíveis para quem crê, em especial nos primeiros capítulos do Gênesis, que são uma espécie de “Constituição” ou “Magna Carta” da relação do cristão com o resto da Criação. São elas: 1)Tudo o que existe vem da mão de Deus (o “como” disso é outra história, até porque há dois relatos diferentes e conflitantes sobre isso no próprio Gênesis); 2)Deus é bom e, no princípio, tudo o que ele criou também era “muito bom” (palavras do autor sagrado, não minhas).

Desse ponto de vista, parece-me contraditório e, no limite, até blasfemo, ver as conexões profundas, da genética à morfologia e ao comportamento, entre nós e os demais primatas, e continuar afirmando, contra toda a evidência, que nós não temos relação nenhuma com elas. Se o pressuposto é a bondade e a sabedoria de Deus, por que ele construiria criaturas tão semelhantes a nós do zero, sem que o elo existisse? E mais, por que daria à nossa espécie todo o arcabouço mental para compreender tudo isso? Para confundir a nossa cabeça e nos “testar”? Para nos fazer andar de olhos fechados pelo mundo? Um Deus com esse “senso de humor” torcido não é o Deus de Jesus.

Se foi “do barro da Terra” que o Senhor Deus nos fez, os grandes macacos são parte desse barro. Desdenhar nosso parentesco com eles é, no fundo, desdenhar nosso elo com o resto da Criação. Não me parece o mais cristão dos comportamentos.

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