Estamos brincando de Deus?

Reinaldo José Lopes

O avanço crescente da chamada biologia sintética, como é conhecida a busca pela criação de genomas e organismos “sob medida” em laboratório, tem trazido à tona um velho espectro (ou talvez seja melhor dizer um velho “non sequitur”). Falo do temor algo exagerado de que os biólogos estejam querendo “brincar de Deus”, como o pessoal costuma dizer nos filmes de ficção científica. (Para quem quer o equivalente a um cursinho rápido sobre biologia sintética, escrevi sobre o tema aqui, aqui, aqui e, puxa vida, aqui também).

Queria aproveitar o espaço do blog pra tentar pontuar algumas das implicações bioéticas e, por que não, também teológicas dessa empreitada, ainda que muito brevemente.

Pra começar, o que os avanços na área mostraram de vez, se é que ainda havia necessidade disso, é que a diferença entre matéria não viva e viva é de organização apenas, e não de essência. Não existe “força vital” misteriosa: se for possível sintetizar direitinho em laboratório todos os componentes químicos do DNA de uma espécie e inseri-los com os devidos cuidados numa célula, essa célula vai passar a funcionar segundo essas instruções. DNA é software, células são hardware.

Não que isso devesse assustar alguém hoje em dia, diga-se de passagem. O fato de a vida ser um fenômeno material não a torna menos complexa e bela. Também não é o caso de achar que essa visão de como os seres vivos funcionam torna Deus irrelevante para quem acredita nele. Afinal, acreditar em Deus “só” porque ele teria sido necessário para criar diretamente as formas de vida é o clássico caso do chamado Deus das lacunas, ou seja, a divindade que só serve para tapar os buracos do nosso conhecimento.

O problema de se prender a esse tipo de visão do divino é que, quanto mais nosso conhecimento cresce, mais Deus parece encolher. E essa não me parece a mais sólida das bases para a fé religiosa.

PERIGO REAL E IMEDIATO?

Outra preocupação, bem diferente, é a que envolve a própria ética de criar esses organismos. É certo, afinal, colocar no mundo criaturas com genoma fabricado totalmente por seres humanos? Isso não é dar mole para o azar, ou para o próprio Apocalipse?

Primeiro, é preciso colocar as coisas em perspectiva. A saber:

1)Em si, o ato de criar variedades de seres vivos que não existem natureza tem uns 10 mil anos de idade, mais ou menos. Grande parte dos nossos cultivos mais importantes, que alimentam gente no mundo todo, são híbridos de espécies que, na natureza, eram separadas – a começar pelos singelos burros e mulas;

2)Plantas transgênicas estão aí já faz um par de décadas, sem danos apreciáveis para pessoas ou para o ambiente — embora a vigilância seja importante e necessária, claro;

3)O termo “sintético” pode, na verdade, passar a imagem errada. Embora a sequência de letras do DNA seja nova, todos os mecanismos biológicos usados nessas criaturas são, por enquanto, e serão por muitos anos ainda, meras recombinações do que existe na natureza;

4)Organismos criados em laboratório normalmente dependem de condições ideais de cultivo e possuem um “fitness” (grosso modo, uma capacidade de sobreviver e se reproduzir) bem inferior à de organismos selvagens.

Nada disso, claro, significa que não se deva todo o cuidado do mundo com o uso comercial ou científico desses organismos. O público precisa entender o que está por vir e ter voz nas decisões políticas e econômicas que envolvem essa tecnologia. Mas um temor “teológico” em relação à biologia sintética é injustificado. É melhor entender os potenciais, os perigos e as limitações da tecnologia — e seguir em frente com a pesquisa, com cautela, mas sem medo.

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