Desculpaí, mas Jesus existiu: um preâmbulo

Reinaldo José Lopes

Em plena Semana Santa, achei que seria o caso de abordar a fundo aqui no blog a questão da historicidade do personagem central destes sete dias: Jesus de Nazaré, é claro. Como o papo é complicadíssimo e o tempo de todo mundo (principalmente o meu, hehehe) é limitado, o único jeito é “quebrar” a discussão em vários posts. Este, portanto, é o preâmbulo — a ideia é publicar mais um post por dia até a Sexta-Feira Santa. Allons-y (como diria um certo doutor)!

Primeiro de tudo:

POR QUE MEXER NESSE VESPEIRO?

Como o título da série de posts deixa claro, a ideia é defender que algum sujeito chamado Jesus de fato nasceu em Nazaré (ou nasceu em Belém e cresceu em Nazaré, como queiram), andou pelas estradas da Galileia e da Judeia pregando e foi crucificado em Jerusalém lá pela terceira década do século 1º d.C. A questão é que, embora a esmagadora maioria dos historiadores sérios, tanto religiosos quanto agnósticos ou ateus, defenda que esse personagem existiu, há uma pequena minoria de amadores, e um ou outro historiador sério (em geral não especialista na análise das fontes bíblicas como documentos históricos), que diz que Jesus é basicamente um mito, inventado por Paulo ou por outros membros da primeira geração de cristãos. É claro que as afirmações desse pequeno grupo se tornaram populares, viraram “virais” na internet e seduziram boa parte das pessoas que, com bons ou maus motivos, querem dar umas porradas na crença cristã tradicional.

Bem, meu objetivo é demonstrar que essa ideia, desculpaí, beira a pseudociência. Se você usar os critérios SECULARES, “não religiosos”, que todos os historiadores usam para estudar o resto da Antiguidade clássica, e for honesto e equilibrado com os dados, a tendência esmagadora da lógica é aceitar a historicidade básica de Jesus de Nazaré.

MAS DIZEM QUE O CARA ANDOU SOBRE AS ÁGUAS E VOLTOU DOS MORTOS! COMO ISSO PODE SER HISTÓRICO?

Calma, calma, não criemos pânico. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Quando digo “historicidade básica”, quero dizer exatamente isso: os documentos históricos que chegaram até nós da Antiguidade são suficientes pra estabelecer que um sujeito chamado Jesus de Nazaré existiu, morreu lá pelo ano 30 d.C. e fez algumas coisas interessantes, como atuar como pregador, reunir discípulos e se indispor com as autoridades em Jerusalém. Usar esses documentos pra “provar” que ele tinha poderes sobrenaturais é outra história, completamente diferente — aliás, não é história, é teologia. O ponto central desta série de posts é tão somente demonstrar que não é razoável negar a existência histórica da figura. O resto está aberto à discussão.

É FÁCIL PRA VOCÊ FALAR, AFINAL VOCÊ É CATÓLICO, MANÉ!

Nunca escondi de ninguém e já abordei diversas vezes aqui no blog a minha crença religiosa. É claro que isso cria um viés, ainda que inconsciente, em favor de “acreditar em Jesus” — do ponto de vista da fé, bem entendido. Minha pergunta é: E DAÍ? Se eu fosse ateu, não é improvável (ainda que não fosse garantido) que existisse um viés contrário para “desacreditar”. Viés é que nem bumbum, gente: todo mundo tem o seu. A questão não é fazer com que os vieses inexistam — isso é impossível! –, mas sim fazer todo o esforço para “colocá-los entre parênteses” (ou colchetes!), para tentar, como metodologia, enxergar os dados que temos em mãos da maneira mais desapaixonada possível, deixando as evidências falarem, em vez de torturá-las para que elas digam o que queremos que elas digam.

Só pra constar: embora seja cristão, eu sei — e não tenho problemas pra aceitar — que um sem número de narrativas da Bíblia (a Criação, o Dilúvio, o Êxodo, muito do que se diz sobre David e Salomão etc.) não tem como ser história “real” no sentido como a entendemos hoje. O caso de Jesus, porém, é diferente DO PONTO DE VISTA HISTÓRICO — e não apenas do ponto de vista da fé.

A QUESTÃO DA “INVISIBILIDADE ARQUEOLÓGICA”

É claro que, em tese, todo o debate sobre a (in-)existência do Nazareno poderia ser resolvido de uma tacada só. Bastaria que alguma escavação em Jerusalém — digamos, na área da antiga Fortaleza Antônia, a praça-forte do poderio romano na Cidade Santa — achasse uma ordem de execução assinada por Pôncio Pilatos para um certo galileu. Ou que achassem a tumba com os restos mortais do dito cujo, o que, de quebra, enterraria o “mito da Ressurreição” (não, a tal “tumba de Jesus” que acharam e puseram em documentários de TV a cabo muito provavelmente não é a dele, mas isso é tema pra outro post).

Infelizmente, a chance de uma descoberta dessas acontecer é próxima de zero. Explico.

O fato, brava gente, é que boa parte das pessoas comuns do Império Romano, em especial os camponeses de uma população conquistada como os judeus da Galileia e da Judeia, são virtualmente invisíveis para nós com base na arqueologia. Sabemos um bocado sobre suas casas, seus instrumentos de trabalho, suas sinagogas e seus utensílios de cozinha, mas não conseguimos “colocar um rosto” nesse povo todo: não sabemos seus nomes, as histórias que contavam em volta da fogueira, o que pensavam, nada — a começar pelo fato de que quase todos, se não todos, devem ter sido analfabetos. É verdade que temos monumentos funerários de padeiros, açougueiros e ex-escravos romanos, que contam um pouco da história dessas pessoas, mas é preciso lembrar que esse é o povo “que deu certo”: gente que veio de baixo e acabou conseguindo uma posição econômica de destaque, e/ou tinha patronos com mais dinheiro e poder do que eles — fazer um monumento funerário era caro, pra começar.

Nada disso parece ter sido o caso de Jesus, de sua família ou de seus discípulos, oriundos, como eram, de um vilarejo de 200 pessoas nas colinas da Galileia. É natural que eles tenham sido “invisíveis” — ou, melhor dizendo, só tenham se tornado visíveis por meio de documentos literários, criados décadas depois da morte de Jesus por discípulos que tinham nível educacional e econômico mais elevado. É, aliás, o que acontece com todos os outros camponeses da Antiguidade: suas caras e suas vozes só aparecem quando são registradas — e, inevitavelmente, alteradas — pelos textos de gente que não pertencia à camada social deles.

O fato de que os Evangelhos retratam Jesus como alguém que arrebanhou milhares de seguidores antes de ser crucificado não refresca muito as coisas. Primeiro, é claro que os Evangelhos podem estar exagerando (até sem má intenção, apenas por distância cronológica) o número de seguidores de Jesus. Mas, fora isso, é importante lembrar que profetas, pregadores e milagreiros eram um fenômeno comum na Palestina do século 1º d.C. Entre a ascensão de Herodes, por volta de 40 a.C., e a revolta judaica contra Roma em 66 d.C. — um século, portanto — há pelo menos uns dez casos registrados de rebeldes messiânicos ou profetas que bagunçaram o coreto na região. Nada indica que, para aquele momento inicial, Jesus era mais importante do que esses sujeitos.

JESUS DE NAZARÉ E LEÔNIDAS DE ESPARTA: UM ESTUDO DE CASO

Queria, agora, chegar ao cerne do nosso papo de hoje. O fato é que, se formos usar a escassez de indícios arqueológicos diretos e a falta de fontes propriamente contemporâneas, escritas por “testemunhas oculares da história”, para rejeitar a historicidade de Jesus, teríamos de rejeitar a historicidade de… bem, de uns 70% dos personagens da Antiguidade clássica, ou talvez mais. Ficaríamos só com os monarcas e os membros da alta nobreza. E olhe lá: pra quem assistiu os dois filmes “300”, é bom lembrar que não daria pra aceitar a historicidade de ninguém menos que Leônidas, um dos reis de Esparta, o sujeito que morreu defendendo a Grécia da invasão persa em 480 a.C.

Vejamos: qual a primeira e mais confiável fonte documental histórica sobre a vida de Leônidas? Os textos do historiador grego Heródoto, que escreveu sobre as guerras entre gregos e persas por volta de 440 a.C., 40 anos depois da morte de Leônidas (coincidência ou não, Marcos, o mais antigo Evangelho, foi escrito uns 40 anos depois da morte de Jesus). Parece que Heródoto entrevistou alguns dos ex-combatentes dos dois lados, mas muito do que escreve tem algum cheiro de invenção épica ou de convenção literária, como o relato sobre a luta desesperada dos espartanos para proteger o corpo de seu rei depois que ele tombou.

Tem alguma evidência arqueológica contemporânea sobre a existência do hómi? Um túmulo, um epitáfio, moedas com a cara dele? Nada. Zero. Depois de Heródoto, temos apenas os textos do historiador grego Éforo (que só chegaram até nós por fragmentos), que escreveu mais de um século depois das Termópilas, por volta de 350 a.C. E, muito mais tarde, textos da época romana, produzidos por gente como Diodoro Sículo e Plutarco.

Dá para fazer o mesmo exercício que fiz com Leônidas com uma série de personagens da Antiguidade clássica. Sob esse ponto de vista, Jesus é um personagem histórico muito mais bem documentado do que Leônidas, já que há fontes independentes cristãs, judaicas e pagãs, todas compostas de algumas décadas a um século depois da morte dele, a respeito do Nazareno.

Meu próximo post começa a abordar essas fontes, partindo de Flávio Josefo, um historiador judeu cujos textos parecem ter sido alterados por copistas cristãos posteriores — mas, ao que tudo indica, não de maneira irreparável. Até lá!

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