O DNA do povo de Luzia

Reinaldo José Lopes

Esse negócio de povoamento da América anda ficando cada vez mais complicado. A mais recente adição ao caldeirão de ideias sobre os primeiros habitantes do nosso continente veio da descoberta de um esqueleto de adolescente de 12 mil anos no México, como contei em reportagem recente para esta Folha. Apelidada de Naia, ela tem traços vagamente “africanos”, como a célebre Luzia, uma “brasileira” mais ou menos da mesma idade, mas seu mtDNA ou DNA mitocondrial, herdado apenas pelo lado materno, é aparentado aos dos indígenas modernos, os quais, como sabemos, não têm essa aparência. E aí, como é que pode ser verdade uma coisa dessas, Bátima?

O crânio mexicano conhecido como Naia. (Crédito: Divulgação)
O crânio mexicano conhecido como Naia. (Crédito: Divulgação)

Ainda estamos longe – MUITO longe – de bater o martelo sobre esse tema, mas eu queria aproveitar esse post para explicar o pano de fundo da discussão e as ideias que competem para explicar a origem dos paleoamericanos, como são conhecidos os primeiros habitantes das Américas.

QUESTÃO DE CAVEIRAS

Primeiro, um fato é indiscutível: tem uma diferença considerável de morfologia, ou seja, de formato anatômico mesmo, entre os paleoamericanos (até uns 10 mil anos atrás no continente de modo geral, chegando até 8.000 anos atrás em Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais) e os indígenas mais recentes, até o presente.

Em resumo, o crânio paleoamericano típico é mais comprido, mais estreito e possui uma face mais projetada para a frente do que a média dos índios atuais. Esses traços se juntam para formar feições que, à primeira vista, chamaríamos de “africanas”, mas também cabem para uma série de povos do atual Pacífico, como os aborígines australianos e os habitantes nativos da Nova Guiné.

Muita gente defende que esse é o “módulo básico” da humanidade. Lembre-se de que os primeiros Homo sapiens saíram da África há cerca de 70 mil anos para conquistar o planeta inteiro, e eles tinham essa morfologia, grosso modo. Os aborígines e papuanos teriam simplesmente retido esse padrão ancestral, enquanto outros processos evolutivos levaram ao desenvolvimento das feições tipicamente europeias ou asiáticas com o passar do tempo.

A questão, então, é explicar como uma morfologia “vira” (ou substitui) a outra nas Américas. Beleza?

Bem, temos então algumas possibilidades.

Migração transoceânica – De alguma forma, após chegar ao Pacífico, esses humanos “modelo básico” teriam atravessado o resto do oceano e chegado às Américas diretamente por barco, talvez há várias dezenas de milhares de anos. Outra ideia é que eles poderiam ter vindo via Atlântico, da Europa (nessa época o “modelo básico” da morfologia craniana também predominava no continente europeu). A esmagadora maioria da comunidade científica acha a ideia improvável, seja pela falta de tecnologia náutica confiável na época, seja pelo fato de que a maioria dos outros indícios aponta para uma entrada via Sibéria/Estreito de Bering/Alasca – por onde teriam vindo, de qualquer maneira, os ancestrais dos índios modernos.

Modelo dos dois componentes biológicos – Defendido por brasileiros como Walter Neves, da USP. Como o nome indica, seriam dois grandes “povos”, o de Luzia e o dos indígenas posteriores, ambos com origem siberiana.

O crânio da "brasileira" Luzia e sua reconstrução artística (Crédito: Reprodução)
O crânio da “brasileira” Luzia e sua reconstrução artística (Crédito: Reprodução)

A ideia é que o primeiro componente teria chegado por aqui num momento em que os habitantes da Ásia ainda tinham o aspecto “basicão”, “africano”, talvez há uns 15 mil anos. Com o passar do tempo, as populações asiáticas foram se “mongolizando”, ou seja, adquirindo o aspecto asiático clássico ao qual estamos habituados, e teriam dado origem aos índios atuais. Isso teria acontecido por uma mistura de combate e miscigenação, até porque o grupo de Neves já mostrou que certos índios modernos, como os botocudos, conservam um padrão de morfologia craniana semelhante ao dos paleoamericanos.

Modelo de continuidade, com ou sem fluxo gênico – A ideia aqui é que um único grande grupo populacional teria sido responsável pelo povoamento do continente. Os defensores da ideia apontam basicamente para as evidências genéticas, como a análise da mexicana Naia, ou as características de DNA que unem os indígenas vivos hoje aos siberianos atuais.

Como eles explicam a morfologia peculiar do crânio dos paleoamericanos? Uma possibilidade, também explorada nas análises de crânios, é que a população humana original a se expandir a partir da África tivesse uma variabilidade morfológica bastante grande, incluindo tanto o padrão “Luzia” quanto coisas mais “asiáticas”. Com o passar do tempo, essa segunda tendência teria se tornado predominante, em parte, talvez, por influência de algum fluxo gênico (ou seja, miscigenação) com populações mais “mongolizadas” vindas da Sibéria.

Outra possibilidade é que fatores evolutivos locais, aqui mesmo na América, tenham simplesmente metamorfoseado os paleoamericanos em ameríndios.

DNA DECIDE?

Os dados de DNA são evidências importantes, mas por enquanto está difícil bater o martelo em torno deles. O mtDNA, por ser transmitido só por via materna e ser uma parte muito pequena do patrimônio genético, não necessariamente pode significar algo importante. Por exemplo: muitos brasileiros “brancos” de hoje carregam mtDNA indígena ou africano, porque lá no passado uma tataravó negra ou índia deles se uniu a um branco. Mas a maior parte do DNA dessas pessoas é de origem europeia. Algo parecido poderia valer para Naia.

O jeito vai ser mesmo tentar obter genomas completos de esqueletos paleoamericanos, o que tecnicamente não é uma tarefa fácil, já que o DNA se degrada com relativa facilidade ao longo de milhares de anos, além de sofrer contaminações de DNA de bactérias. Já há um genoma completo obtido de uma criança achada nos EUA mais ou menos com a idade correta, que até sugere a contribuição de dois componentes populacionais, mas não temos a morfologia craniana (seu crânio não foi preservado). A coisa, portanto, ainda vai longe.

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