Nicholas Wade: os genes e a história humana
Demorei muito mais do que gostaria, mas finalmente consegui traduzir a íntegra da minha conversa com o jornalista de ciência britânico Nicholas Wade sobre seu novo livro, “A Troublesome Inheritance” (“Uma Herança Problemática”), sobre a relação entre genética e características das chamadas raças humanas (como talvez o gentil leitor se lembre, escrevi reportagem a respeito).
O ponto central do livro, para quem não se lembra, é a ideia extremamente polêmica de que diferenças genéticas entre as raças humanas teriam tido um papel no desenvolvimento econômico e social do planeta. Para ser mais exato: geneticamente, povos de origem europeia e alguns asiáticos, como os chineses e japoneses, estariam “predispostos” a desenvolver sociedades complexas e ricas, em detrimento de povos como os africanos e os indígenas das Américas.
Sem mais delongas, vamos à sessão de perguntas e respostas com Wade.
Folha – No livro, o sr. tende a abordar os grupos raciais como categorias mais ou menos estanques, sem miscigenação. O que acontece se aplicamos a descobertas genômicas mais recentes a nações altamente miscigenadas, como o Brasil? Deveríamos esperar simplesmente um nível de desenvolvimento “intermediário” entre os níveis europeu e africano, por exemplo? E o que poderia ser previsto a respeito de sociedades que costumavam ser mais homogeneamente europeias, como os EUA, mas que estão recebendo cada vez mais imigrantes da América Latina e de outras regiões? Isso, em princípio, afetaria o nível de desenvolvimento americano, segundo a premissa do seu livro?
Wade – É impossível responder esse tipo de pergunta com precisão. Parece-me uma observação razoável dizer que países nos quais o tribalismo é forte têm mais dificuldade para fazer a transição para uma economia moderna do que países nos quais o tribalismo desapareceu há muito tempo. Mas uma nação como os Estados Unidos pode absorver facilmente pessoas de países tribais porque tais imigrantes acabam se ajustando ao comportamento social da população que já é maioria no país. Embora a genética tenha algum papel no comportamento social, a cultura e as tradições políticas são mais importantes, em especial no curto prazo. Então, não, esperar que os níveis de desenvolvimento econômico de um país tenham correlação com sua composição racial seria dar peso excessivo à genética.
OK, mas o sr. ainda não respondeu a parte da pergunta a respeito de países que já “começam” miscigenados, como o Brasil.
Ainda não sabemos o suficiente sobre a base genética do comportamento social humano para tentar responder a essa questão. Mas não vejo motivo para que uma população mestiça, como a do Brasil, não possa ser tão bem sucedida quanto a dos EUA, que também é uma sociedade com mistura racial. Os imigrantes vão acabar seguindo as regras sociais de seu país adotivo. Isso vale tanto para imigrantes chineses quanto africanos nos Estados Unidos, e o mesmo certamente também é verdade no Brasil.
As regras sociais são, em grande parte, definidas pela cultura, embora possa existir um pequeno componente genético. Algumas culturas políticas são favoráveis ao livre empreendedorismo e à inovação, outras não. Isso certamente é mais importante que a genética.
Uma das objeções levantadas pelo psicólogo evolucionista Steven Pinker aos argumentos do sr. é que, embora a evolução humana certamente tenha acontecido de forma diferente em cada região, é difícil pensar numa sociedade na qual as pressões seletivas em favor da inteligência não tenham sido dominantes. A inteligência é tão importante para um guerreiro africano quanto para o presidente de uma multinacional. Como o sr. responde a essa crítica?
No livro, sugiro que os pesquisadores deram atenção excessiva à inteligência. Um fator mais importante para o sucesso de uma sociedade seria seu grau de coesão social. No entanto, dentro de quase todas as sociedades, é verdade que a inteligência tende a ser recompensada com sucesso social.
No livro, o sr. é franco ao reconhecer que ainda estamos longe de identificar os trechos de DNA que poderiam comprovar a ideia de que há uma base genética forte para as diferenças entre sociedade. Nesse caso, não teria sido melhor ser mais cauteloso e evitar as especulações enquanto dados mais conclusivos não aparecem?
Em primeiro lugar, não vejo nada de errado com a especulação, desde que você deixe claro ao leitor que está especulando. De outro modo, como poderíamos explorar o desconhecido? Em segundo lugar, meu livro apresenta um argumento razoavelmente bom de que o comportamento social humano tem uma base genética. Em alguns casos, já conhecemos os mecanismos genéticos que estão em ação, como o sistema da oxitocina, envolvido na confiança dentro de grupos sociais, e o sistema do gene MAO-A, cujas variantes estão correlacionadas com o comportamento agressivo. Além disso, sabemos que houve grandes mudanças na estrutura social humana, tal como a transição de caçadores-coletores para comunidades sedentárias, o que quase certamente exigiu uma mudança evolutiva no comportamento social.
O sr. menciona o caso das comunidades de imigrantes libaneses, imigrantes chineses etc. que conseguem prosperar em sociedades desenvolvidas, enquanto os países de origem deles continuam muito atrás. Isso parece contradizer o ponto central do livro. Se fosse possível transferir toda a população do Líbano para Londres, será que todos eles prosperariam? Nesse caso, ficaria provado que as raízes genéticas do comportamento humano não são importantes, ao menos em termos étnicos.
A genética não explica tudo! A evolução, conforme explico em meu livro, provavelmente está envolvida em mudanças de longo prazo no comportamento social, como a transição ligada à Revolução Industrial, ou seja, de uma economia agrária para um Estado moderno e produtivo. Mas essa mudança no comportamento social não é suficiente para produzir uma economia moderna. As estruturas políticas necessárias para essa mudança também precisam existir. É por isso que a Revolução Industrial se espalhou de forma quase imediata da Inglaterra para outros países europeus, mas com um atraso substancial para países do Extremo Oriente, onde as estruturas políticas bloquearam o desenvolvimento econômico por muitas décadas.
As comunidades de imigrantes chineses floresceram porque estavam livres dos controles autocráticos que abafavam a atividade econômica na China. Da mesma maneira, os libaneses no exterior estão livres dos arranjos tribais que ainda são predominantes na política do Líbano. No experimento que você sugere, se a população libanesa inteira fosse transportada para Londres e substituísse a população local, ela poderia acabar recriando os sistemas de governança tribal com a qual está acostumada. Mas, se essa população fosse distribuída pelo território do Reino Unido, provavelmente ficaria adaptada ao comportamento social local e seria tão produtiva quanto outras comunidades libanesas fora do Líbano.
Será que é mesmo correto comparar as pressões da seleção natural que existem em populações humanas com as que afetaram experimentos de seleção artificial, como raposas que se tornaram mansas e parecidas com cachorros depois da seleção rigorosa de muitas gerações de filhotes? Minha sensação é que existe uma enorme gama de pressões seletivas diferentes no caso dos seres humanos quando o assunto é sucesso reprodutivo. Às vezes vale a pena ser um sujeito trabalhador e consciencioso, às vezes vale a pena ser um criminoso com talento para seduzir mulheres, e tem sido sempre assim.