O cérebro de meio bilhão de anos
Na semana passada, alguns dos fósseis mais bonitos que já vi na vida ganharam as páginas da revista científica “Nature”. Eram invertebrados de mais de meio bilhão de anos, batizados de Lyrarapax unguispinus, que tiveram boa parte de seu cérebro preservado em rochas de Chengjiang, na China, como conto nesta reportagem na Folha. Aproveito para publicar na íntegra aqui no blog a entrevista que fiz com o paleontólogo Nicholas Strausfeld sobre a espécie. Confiram!
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Folha – A cor azul dos espécimes que vocês estudaram é muito impressionante. Essa é mesmo a cor original deles? Existe alguma razão química específica para essa coloração dos fósseis?
Strausfeld – A cor azul de fato está presente naturalmente nos espécimes, mas foi reforçada digitalmente para aumentar o brilho da imagem. Algumas imagens também contêm filtros de cor digitais para revelar com mais clareza os detalhes dos traços do cérebro.
Quão rara é a preservação de tecidos cerebrais em fósseis desse tipo? Confesso que é a primeira vez que vejo esse tipo de tecido preservado, mas estou mais acostumado a escrever sobre fósseis de vertebrados, então pode ser só um viés da minha parte.
É muito raro encontrarmos tecido neural no registro fóssil, e é algo quase inédito no caso de fósseis de vertebrados. No entanto, os fósseis de Chengjiang, como estes, bem como outros fósseis do tipo Burgess Shale [famoso sítio paleontológico do Cambriano canadense] são incomuns pelo fato de terem preservado muitos conjuntos de órgãos além da morfologia externa. Muito raramente, partes do sistema nervoso central (cérebros, gânglios) ficam preservados na forma de contornos achatados. Mas esses casos são muito raros. Por exemplo, no caso do Fuxianhuia, uma das espécies mais abundantes da biota de Chengjiang, entre centenas de espécimes, achamos apenas três fósseis com o cérebro preservado.
O sr. acredita que as suas descobertas trazem evidências definitivas de que os anomalocaridídeos, o grupo do Lyrarapax, são artrópodes e não “alguma outra coisa”?
As pessoas tendem a usar o termo “artrópode” de um jeito não muito preciso. Um dos usos da palavra é o de artrópodes como o grupo que inclui hexápodes (insetos), crustáceos, miriápodes (centopeias) e quelicerados (aranhas, escorpiões e seus parentes). O termo “panartrópode” inclui esses quatro grupos acima, mais onicóforos e tardígrados. Outra possibilidade é chamar de “euartrópodes” o conjunto de hexápodes, crustáceos, miriápodes e quelicerados e usar o termo “artrópodes” para se referir aos euartrópodes mais onicóforos e tardígrados.
Voltando à sua pergunta: nossos achados não confirmam quais são as afinidades exatas dos anomalocaridídeos. Eles têm sido considerados euartrópodes primitivos, quelicerados primitivos ou mesmo um grupo evolutivo que tenha similaridades convergentes com os artrópodes. Nós descobrimos que o cérebro dos anomalocaridídeos é mais parecido com o que vemos nos onicóforos do que nos euartrópodes. Essa descoberta vai contra o suposto parentesco dos anomalocaridídeos com os quelicerados, mas nada além disso.
É possível inferir algo sobre o nível de complexidade do cérebro do Lyrarapax?
O cérebro do Lyrarapax provavelmente não é tão complexo quanto o cérebro dos euartrópodes que existiam durante o mesmo período geológico. Ele apresenta a mesma organização segmentada presente no cérebro dos onicóforos, mas não no dos euartrópodes, como defini acima. No entanto, o animal possuía olhos grandes e provavelmente um sistema visual bastante sofisticado. Também tinha grandes gânglios na base de seus apêndices frontais raptoriais [usados para capturar presas]. Os onicóforos também possuem um arranjo parecido em seus apêndices frontais. A organização do cérebro em gânglios separados e um neurópilo [conjuntos de conexões nervosas] central sugere que se trata de um cérebro que, como o dos vertebrados, era organizado para a integração multimodal e o controle centralizado de todas as ações corporais.
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