Em chamas
Em todos estes anos nesta indústria vital (como dizia aquele personagem do Pica-Pau), uma das coisas que continuamente alegram um escriba é conquistar leitores inteligentes. Um deles deixou o seguinte comentário no post de ontem:
“Boa noite, caro Reinaldo. Já faz algum tempo que espero um momento oportuno para lhe pedir, por gentiliza, que avalie a seguinte hipótese. Raciocine comigo: nos diferenciamos dos demais animais pela nossa inteligência. Inteligência demanda energia para o cérebro. Esse “upgrade” cerebral foi possível graças a utilização do fogo no preparo dos alimentos, especialmente da carne, o que maximizou seu “potencial energético”. Noutros termos: o domínio sobre o fogo foi uma condição “sine qua non” para a evolução da nossa espécie. Segundo as evidências mais antigas, isso ocorreu a uns 300 mil anos atrás. Me parece muito lógica e óbvia essa hipótese em vista da resposta a pergunta: que outro animal domina a tecnologia do fogo? Nenhum! Razão pela qual somos tal e qual. Reinaldo, novamente, como você avalia essa hipótese? Ela já existe? Seria impossível, improvável, provável ou certa? Meu parabéns pelo excelente artigo de hoje.”
Ótimas perguntas. De fato, essa hipótese existe e já foi objeto de uma série de publicações por parte do primatologista britânico Richard Wrangham, da Universidade Harvard. Olha ele aí do lado. Seu livro sobre o tema, chamado “Pegando Fogo”, está disponível em português.
Alguns pontos importantes a ressaltar a respeito das evidências que podem apoiar essa hipótese:
1)O uso controlado do fogo muito provavelmente é mais antigo do que meros 300 mil anos. Há dados obtidos numa caverna da África do Sul, por exemplo, indicando que fogueiras já eram construídas de forma deliberada e recorrente há cerca de 1 milhão de anos, provavelmente construídas por membros da espécie Homo erectus.
2)Wrangham, contudo, propõe que o uso deliberado do fogo para cozinhar seria quase duas vezes mais antigo, recuando a cerca de 1,8 milhão de anos.
Ele propõe essa data tão recuada porque esse é justamente o momento em que é possível detectar, no registro fóssil da linhagem humana, dois fenômenos concomitantes que o deixaram com a pulga atrás da orelha. O primeiro é o aumento considerável do tamanho do cérebro de nossos ancestrais — no caso, os mais antigos Homo erectus, ou então Homo ergaster (há debates sobre a classificação das criaturas). O cérebro deles teria alcançado dimensões que são quase o dobro da capacidade craniana de chimpanzés (nós, para efeito de comparação, temos um cérebro quase três vezes maior que o de nossos primos).
Segunda pista: mais ou menos na mesma época, ocorre uma dimensão diminuição considerável do tamanho dos dentes, em especial os usados para triturar material vegetal mais duro.
Para o primatólogo de Harvard, essa correlação sugere que o domínio do fogo teria ajudado nossos ancestrais a cozinhar fontes de nutrientes mais duras, como tubérculos (mandiocas da savana, digamos). Com isso, passaram a obter muito mais energia a partir da mesma quantidade de comida. Essa energia extra teria favorecido o crescimento do cérebro, diminuído a necessidade de “investir” metabolicamente em grandes intestinos (que não se fossilizam) e em dentões (que se fossilizam).
3)Tudo muito plausível, sem dúvida. Mas ainda falta o ingrediente final: evidências de uso do fogo com 1,8 milhão de anos. Enquanto isso não rola, a maioria dos paleoantropólogos continua defendendo que foi o uso mais intensivo da proteína animal — comer mais carne, basicamente — o principal combustível para o aumento cerebral dos Homo erectus.
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