Deus e Darwin na terra de Marina
Nunca pensei que fosse ter o prazer de parafrasear Glauber Rocha num título de post, mas a campanha eleitoral deste ano está tão maluca que essa é a menor das esquisitices dos últimos tempos. Como deve estar bastante claro, gostaria de examinar o célebre (suposto?) criacionismo de Marina Silva. Resumindo bem resumidinho: será que ela é? E, ainda que seja, será que isso é realmente importante?
Bom, no melhor estilo bíblico, lá vou eu fazer uma exegese das declarações mais importantes que a candidata do PSB já fez sobre o tema. Por sorte, a transcrição da entrevista que ela deu a uma equipe universitária adventista de TV anos atrás está disponível num dos blogs do grande Roberto Takata, praticamente um ombudsman extraoficial do jornalismo científico brasileiro. Peço que confira o link acima para ver todo o contexto da conversa, mas acho que a parte mais relevante e que merece nossa atenção é esta declaração da ex-senadora:
Olha, é impossível crer em Deus se não crer que ele criou todas as coisas, não é? E se nós não sabemos como explicar as coisas, então não devemos ter a pretensão de dizer que elas não existem porque não sabemos como elas podem ser explicadas. E a fé é exatamente isso, é nós crermos mesmo sem entendermos e eu com certeza acredito que Deus é o criador de todas as coisas, não é? E que esse criador tem um projeto, que as coisas não acontecem, assim, por acaso, alhures [sic]. Existe um projeto inteligente da inteligência divina que governa todas as coisas.
OK, é basicamente isso.
Mais tarde, ao ser questionada a respeito no tema durante o Roda Viva, Marina respondeu:
“Eu não sou criacionista. Isso foi um criacionismo que criaram para mim. Acredito que Deus criou todas as coisas, inclusive as contribuições trazidas por Darwin.”
Vamos à exegese, ou ao “midrash”, como diriam nossos colegas rabínicos. O problema aqui é que, de modo não muito diferente do que se dá em algumas passagens bíblicas, os textos à nossa disposição são lacônicos demais para que seja possível tirar alguma conclusão definitiva. Já explico.
Você pode até achar — e essa é a interpretação feita pelo Takata nos comentários de seu post sobre o tema –, que a dificuldade de saber o que a candidata realmente quis dizer tem mais a ver com as célebres voltas que ela dá com seu discurso “sonhático” e que, na verdade, ela declarou seu apoio tanto ao chamado Criacionismo da Terra Jovem (essa é a vertente defendida pela maioria dos adventistas, por exemplo, que acredita que as narrativas sobre Adão e Eva são literalmente verdadeiras e que o Universo e a Terra têm só alguns milhares de anos de idade) quanto ao chamado Design Inteligente. (Essa é a vertente do criacionismo que afirma ver sinais claros de um “projeto de engenharia” bolado por uma mente inteligente no funcionamento dos seres vivos, como o ajuste fino da estrutura das células, por exemplo. Seus defensores às vezes aceitam uma idade de bilhões de anos para os Cosmos e nem sempre declaram com todas as letras que o tal Projetista Inteligente seja o Deus judaico-cristão.)
MOMENTO AGNÓSTICO
A questão é: dá mesmo pra concluir tudo isso a partir do que Marina disse? Modestamente, eu acho que não e prefiro permanecer agnóstico (oops, sem trocadilho) em relação ao que ela quis dizer.
Em primeiro lugar, por um motivo simples: o contexto no qual ela estava falando e, mais importante ainda, com quem ela estava falando. Pense na coisa pelo seguinte ângulo: há um número considerável de cientistas de alto nível (embora eles certamente sejam minoritários, bem minoritários mesmo, no meio) que são cristãos praticantes e que não só aceitam a teoria da evolução como a usam rotineiramente em seus estudos. Um dos principais exemplos atuais é o americano Francis Collins, que coordenou a versão pública do Projeto Genoma Humano — e não tem como estudar genoma sem estudar evolução, gentil leitor. Collins fala e escreve abertamente sobre sua fé e é um defensor de Darwin. Mas garanto a você que, se um colega de igreja de Collins perguntar se ele acha que Deus “criou todas as coisas” e “tem um projeto que governa todas as coisas”, ele vai responder que… bom, sim, claro.
Veja bem: a teoria da evolução versa principalmente sobre os MECANISMOS que geraram a diversidade da vida na Terra — o mais importante deles, aparentemente, é a seleção natural, 0u seja, o sucesso reprodutivo maior de certos indivíduos, devido a certas características que surgem a partir de mutações (essas sim aleatórias) e que são passadas para a geração seguinte. Ponto. O fato de o processo todo parecer algo que não é guiado diretamente por uma divindade ainda deixa um espaço conceitual enorme (válido ou não? aí são outros quinhentos) para que um cristão (ou judeu, ou muçulmano) acredite que a própria existência do Universo e/ou as leis que o regem e permitem a existência da matéria-prima da vida tenham vindo das mãos de Deus e sejam a garantia de que a evolução possa ocorrer.
Ou, segundo um dos pais da síntese teórica moderna da evolução, o ucraniano Theodosius Grygorovych Dobzhansky (1900-1975):
“Eu sou um criacionista e um evolucionista. A evolução é o método de criação de Deus, ou da Natureza. A criação não é um evento que aconteceu em 4004 a.C.; é um processo que começou há uns 10 bilhões de anos e continua ocorrendo.”
Quem vai à missa e repete o Credo — “Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra” — não necessariamente é criacionista no sentido estrito da palavra. Pode ser, pode não ser. Você pode (eu sei que você não aguenta mais tanto “pode”) achar que só não merece a pecha de criacionista quem se declara ateu. Beleza, direito seu. Mas não é essa a definição aceita do termo. Quem aceita Darwin e Deus é, para todos os efeitos, evolucionista teísta, e não criacionista.
E SE FOR?
Como eu disse, pode muito bem ser que a candidata seja, afinal de contas, criacionista.
Nesse caso, é óbvio que, em vez de tergiversar (se é que ela está tergiversando), seria bacana uma declaração direta e sincera. Duro de esperar, talvez, em ano eleitoral.
Agora, quais as implicações práticas dessa discussão? Na real, a única é saber se Marina, caso eleita, usaria sua crença como motivação para mexer no currículo escolar do país para acomodar o ensino do criacionismo como parte das aulas de biologia. Esse seria o único verdadeiro motivo de preocupação e a única verdadeira violação do Estado laico que poderia vir a acontecer por causa da crença dela.
Algo me diz que, com tanto pepino pra resolver num país tão complicado, esse seria o último vespeiro onde alguém se lembraria de enfiar o nariz depois de eleito. Espero que eu não esteja enganado.
——
Quer saber quem sou? Confira meu currículo Lattes
Siga-me no Twitter ou no Facebook
Conheça “Além de Darwin”, meu primeiro livro de divulgação científica