Como o galo perdeu seu piupiu

Reinaldo José Lopes

Se você nunca assistiu a uma dublagem paródica de um dos episódios daquela antiga série de TV do Batman, conhecida popularmente como “Bátima Feira da Fruta”, não sabe o que está perdendo. (Caso queira descobrir, é só dar uma olhada no YouTube.) É besteirol puro, e pode ser que eu ainda tenha 15 anos de idade mental, mas não consigo deixar de rir feito um demente toda vez que ouço o Cruzado de Capa e o Menino-Prodígio falando palavrões aos borbotões. Em dado momento da sátira, o Coringa está mexendo num pequeno frasco e começa a explicar para uma moça:

“Isso aqui, minha filha, isso aqui é um ‘lico’ [sério, o Coringa nessa dublagem pronuncia ‘líquido’ desse jeito] que faz cair p*. Isso aqui cai p*.”

O plano malévolo do Palhaço do Crime é, aparentemente, transformar o pobre Batman em eunuco. Qual não foi a minha surpresa ao ler que descobriram um gene que… bem, faz cair p*.

Para a sorte dos membros (oops) da Liga da Justiça e de todos nós, o treco só funciona em aves. E ele faz parte, na verdade, de uma história evolutiva fascinante, esmiuçada numa série de estudos que tentam entender um mistério: como e por que a maioria das espécies de aves tem machos sem pênis?

Pois é — embora todas as aves dependam da fecundação interna para gerar filhotes, só 3% das espécies possuem machos com algum tipo de pênis capaz de intromissão (ou seja, de penetrar a fêmea). Os galos, por exemplo, embora possuam um falo muito reduzido, não conseguem usá-lo para muita coisa. Para fecundar as galinhas, dependem do chamado beijo cloacal (é o tipo da expressão que dá vontade de ir lavar a mão depois de escrevê-la), simplesmente encostando genitália com genitália, cloaca com cloaca, e transferindo o esperma. Entre as exceções a essa regra está o grupo dos patos, que não só possuem falos como parecem tê-los comprado em Itu — em vários casos, o pênis tem comprimento maior que o do corpo do animal. Imagem abaixo (tirem as crianças da sala antes de ver, por favor).

Um exemplo do falo, digamos, generoso dos patos e marrecos (Crédito: Reprodução)
Um exemplo do falo, digamos, generoso dos patos e marrecos (Crédito: Reprodução)

Ah, tem também o vídeo da ereção. Em câmera lenta. Socorro.

Pois bem: em estudo recente na revista científica “Current Biology”, a equipe liderada por Ana Herrera, do Instituto Médico Howard Hughes (EUA), fez um estudo comparativo do desenvolvimento embrionário e do padrão de ativação e desativação de genes nos falos de galos e patos, comparando também os bichos com o grupo das emas e avestruzes e o dos jacarés e crocodilos — ambos parentes mais distantes que não são tão azarados quanto os pobres galos e também possuem os chamados falos intromitentes (não confundir com “intrometidos”).

TUBÉRCULO

Enquanto o futuro galo ou pato ainda está no ovo, forma-se inicialmente o chamado tubérculo genital, um precursor do futuro pênis. O que os pesquisadores descobriram, curiosamente, é que os “comandos” moleculares para o desenvolvimento do órgão estão presentes tanto na espécie “bem dotada” quanto na espécie com pênis vestigial. Então, porque a diferença no animal adulto?

Culpa da expressão (ou seja, ativação) do gene Bmp4, que acaba induzindo um padrão consistente de apoptose (como é conhecida a morte programada de células) na pontinha do tubérculo genital dos futuros galos. Ou seja, os bichos acabam perdendo as células na extremidade do órgão embrionário, o que lhes dá o pênis quase inexistente.

A coisa fica ainda mais maluca. Ao inativar o Bmp4 nos embriões de galos, o tubérculo genital deixou de regredir, o que mostra que os bichinhos ainda possuem o potencial genético para terem pênis “de verdade”. Por outro lado, a aplicação da proteína cuja “receita” está contida nesse gene fez com que os pobres embriões de pato não desenvolvessem o membro. E a análise comparativa, levando em conta os parentes mais primitivos — o grupo das emas e dos jacarés — indica que os patos são justamente os que retiveram o padrão genético primitivo, enquanto os galos (e muitas outras aves) passaram por alterações que levaram ao uso do Bmp4 para evitar o desenvolvimento do falo.

Podemos resumir as diferenças entre os bichos com a imagem abaixo (a qual também exige um certo estômago pra ver, creio eu):

A evolução dos falos, de galos para patos (Crédito: Reprodução)
A evolução dos falos, de galos para patos (Crédito: Reprodução)

Na esquerda, galo e codorna; na direita, pato e ganso.

O estudo mostra, em primeiro lugar, como a evolução funciona na base do “puxadinho”, ou seja, na reorganização de moléculas antigas para novos usos. O Bmp4, por exemplo, tem uma série de outras funções, mas é sua expressão na pontinha do tubérculo genital que leva à genitália típica dos galos. E basta alterar esse pequeno detalhe para que o padrão ancestral “ressuscite” (mais ou menos o mesmo truque permite que pintinhos desenvolvam dentes na fase embrionária, por exemplo).

O grande mistério, porém, é o porquê de os galos terem ficado semieunucos. Por um lado, sabe-se que o Bmp4 e outros genes de sua família têm relação com outros aspectos do desenvolvimento morfológico, e alterações ligadas a esses outros aspectos poderiam ter levado à diminuição do falo como efeito colateral.

Por outro lado, a cópula sem pênis intromitente exige muito mais cooperação da parte das fêmeas, além de minimizar o risco de acasalamentos forçados. A chamada seleção sexual, portanto — a opção preferencial das fêmeas por parceiros com certos atributos ou, no caso, sem eles –, poderia ter tido um papel nessa esquisitice que, no caso das aves, é tão comum.

Façam suas apostas e cuidado com o Coringa, meninos.

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