Jesus: preso por porte ilegal de arma?
Eu sei que a ideia é chocante, mas foi levantada recentemente num artigo acadêmico sério. Para ser mais preciso, trata-se de um texto na edição de setembro do periódico “Journal for the Study of the New Testament”, assinada por Dale Martin, professor de estudos religiosos da prestigiosa Universidade Yale, nos Estados Unidos. O sugestivo título do artigo é “Jesus em Jerusalém: armado, mas não perigoso”. E aí, é besteira da grossa escrita só para chamar a atenção ou, horror dos horrores, o cara está certo?
Nem uma coisa nem outra, eu diria, mas vamos por partes, porque a discussão é complicadinha.
Pra começar, é bom lembrar que Martin é um estudioso bastante respeitado das origens do cristianismo. Além de seus artigos acadêmicos, o curso introdutório dele sobre o Novo Testamento está disponível para download grátis no site de Yale e no iTunes. Já ouvi algumas vezes, vale a pena para quem sabe inglês. Ah, e não estamos falando de um ateu raivoso. Martin é membro da Igreja Episcopal (como são conhecidos os anglicanos dos EUA).
Passando para a argumentação do pesquisador, a primeira coisa a ter em mente são os relatos sobre a prisão de Jesus nos Evangelhos. Os textos bíblicos afirmam que, quando Judas Iscariotes leva os homens do sumo sacerdote do Templo de Jerusalém para prender o Nazareno, algum dos companheiros de Jesus (que não é identificado com precisão nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, mas que seria ninguém menos que Pedro, segundo o Evangelho de João) saca sua espada e corta a orelha de um servo do sumo sacerdote (chamado Malco, ainda de acordo com João).
É aqui que começa a complicação. Lembrem-se: apesar de levarem nomes de apóstolos, como “Mateus” e “João”, os textos dos Evangelhos são anônimos (os nomes dos autores foram adicionados mais tarde). Ou seja, nenhum deles foi escrito por testemunhas oculares dos fatos, embora possam incorporar tradições que, obviamente, foram legadas por essas testemunhas. Na verdade, o consenso entre os historiadores atuais é que a maior parte das narrativas sobre a morte de Jesus, incluindo essa parte da prisão, tem como fonte original o Evangelho de Marcos. Os demais Evangelhos ampliaram e modificaram Marcos de acordo com suas próprias tendências teológicas e literárias.
MODIFICAÇÃO PROGRESSIVA
Se isso for verdade, o episódio da espada foi sendo progressivamente modificado pelos evangelistas pós-Marcos, talvez porque pegasse mal para os seguidores de Jesus ficarem associados a esse ato violento. Exemplo: em Mateus, logo depois da espadada, Jesus manda seu discípulo guardar a arma com a célebre frase “Todos os que pegam a espada pela espada perecerão”. (Em João ocorre basicamente a mesma coisa, embora a fala de Cristo não seja tão eloquente.) E Lucas acrescenta o detalhe de que, imediatamente depois de a orelha ser decepada, Jesus cura milagrosamente o servo do sumo sacerdote. Falando em Lucas, ele também esclarece, pouco antes dessa cena, que os discípulos de Jesus estavam carregando “apenas” duas espadas.
Conclusão número 1 de Martin: se tivéssemos apenas o texto de Marcos, não teríamos nem as reprimendas de Jesus ao discípulo espadachim nem a informação sobre o armamento limitado dos seguidores do Nazareno. A maioria deles (ou mesmo todos!) poderia estar armada.
O segundo passo do pesquisador é se perguntar como a presença de um grupo de galileus armados com espadas seria recebida numa cidade com Jerusalém, ainda mais na época da Páscoa, quando a Cidade Santa ficava tensa e cheia de peregrinos. Ele, então, repassa uma série de textos antigos sobre as leis e costumes relativos ao porte de armas dentro de cidades do mundo greco-romano. O resumo da ópera é que, na capital imperial, ou seja, a própria Roma, havia uma lei explícita proibindo carregar espadas ou outras armas usadas para combate dentro dos limites da cidade. E, em outras cidades do Mediterrâneo, era no mínimo algo considerado altamente suspeito carregar armas em território urbano. Em várias rebeliões populares contra abusos de Roma dentro de Jerusalém, os judeus normalmente jogavam pedras nos soldados romanos, em vez de usar armas.
Conclusão número 2 do artigo: se os romanos descobrissem que os seguidores de Jesus estavam carregando armas no entorno de Jerusalém, isso já seria motivo para condená-lo à morte. Lembre-se: estamos falando de um não cidadão que representaria, do ponto de vista de Roma, uma ameaça à paz. O pessoal de Roma era partidário da célebre frase “direitos humanos para humanos direitos”, ou até menos que isso…
OK, mas Jesus não era doido nem burro. Ele muito provavelmente sabia que 12 apóstolos com espadinhas made in Galileia não seriam suficientes para derrotar o poderio de Roma. No entanto, este é o argumento central de Martin, Jesus era um profeta apocalíptico. Ou seja, ele esperava a intervenção definitiva de Deus na história para libertar seu povo e instaurar um reino de paz e justiça.
Trata-se de uma crença comum entre os judeus do século 1º d.C. Os fariseus, parece, tinham crenças apocalípticas (o mais famoso deles acabou virando cristão: é o apóstolo Paulo). E a seita que escreveu os Manuscritos do Mar Morto — talvez sejam os chamados essênios — também acreditava nisso. E mais: achava que haveria uma guerra definitiva do bem contra o mal, ou dos “Filhos da Luz” contra os “Filhos das Trevas”, como eles diziam. Nesse combate, Deus mandaria um exército de anjos à terra, e os membros da seita, os “Filhos da Luz”, lutariam lado a lado com as hostes angélicas contra os romanos e os judeus aliados a eles.
Conclusão número 3 de Martin: Jesus pode ter tido essa visão do fim dos tempos também. Carregar espadas seria apenas um jeito de estar preparado quando os exércitos celestes entrassem em ação — nesse caso, Jesus e seus discípulos estariam prontos para lutar do lado “do bem”.
A morte de Jesus, e a crença na ressurreição dele, teria mudado tudo isso, levando os discípulos a redefinir sua visão do fim dos tempos. Mas a crença original deles teria ficado preservada, em parte, como “fósseis” nas narrativas dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos.
PROBLEMAS DE MONTÃO
OK, é uma argumentação interessante. E está claro que a pregação de Jesus tinha uma dimensão política que soava ameaçadora tanto para a elite judaica quanto para Roma. Se você prega o Reino de Deus, é porque implicitamente, ao menos, está condenando os reinos da Terra. Mas a maioria dos estudiosos não compra o argumento de Martin, pelos seguintes motivos:
1)A ideia de que a maioria dos discípulos estava armada é plausível, mas simplesmente especulativa; não dá para saber, no fundo, se eles eram mesmo um bando armado até os dentes;
2)A questão da proibição do porte de armas dentro de Jerusalém é controversa: não temos evidências diretas dessa proibição, e pode ser que o costume das cidades romanas e gregas simplesmente não fosse seguido numa metrópole judaica;
3)Igualmente especulativa é a ideia de que Jesus fosse adepto da teoria “temos de ajudar os anjos na batalha apocalíptica final”.
Esse, creio, é o ponto mais importante. Os Manuscritos do Mar Morto defendem essa visão, mas outra corrente muito importante do pensamento apocalíptico judaico da época, representada pelo livro de Daniel, por exemplo, dá a entender que o “serviço de limpeza” do mal será feito totalmente por Deus no fim dos tempos. Ou seja, os judeus fiéis não precisariam se unir como guerreiros às forças celestiais. Bastaria que eles se mantivessem fiéis a Deus.
Considerando a influência importantíssima do livro de Daniel sobre os primeiros cristãos, desconfio que Jesus se inclinasse por essa segunda opção.
PS — Meus agradecimentos aos manos e minas do ScienceBlogs Brasil por descolarem o artigo na íntegra para este humilde escriba.
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