A volta do monofisismo
Este post vai ser meio “heavy metal” do ponto de vista teológico, e voltado especialmente para um subgrupo dos leitores do blog, que são os religiosos, então acho melhor avisar os incautos logo de cara 😉
Enfim: começou a rolar nos comentários uma discussão (um tanto acerba, como costumam ser as discussões por aqui) sobre como conciliar os estudos sobre a figura histórica de Jesus — estudos seculares, sem pressupostos religiosos, ao menos em princípio — e as crenças religiosas sobre Jesus como Cristo e Filho de Deus. Um exemplo foi este post sobre a tese de que a maioria dos apóstolos teriam chegado a Jerusalém armados. (Não que a tese seja necessariamente verdadeira; na verdade, ela tem vários furos, mas o exemplo é válido, acho.)
Se Jesus era divino — era, segundo a crença da maioria dos cristãos, o próprio Deus encarnado, aliás — será que ele já não sabia que seus apóstolos carregarem armas não era uma boa ideia?
No fundo, isso vale para uma série de passagens bem menos controversas nos textos bíblicos. Em vários casos, Jesus parece simplesmente… se enganar, no sentido de dizer coisas que, do ponto de vista estritamente factual, estão erradas, ou seja, não correspondem aos fatos. Por exemplo: quando ele diz que “alguns dos que estão aqui não provarão a morte até que o Reino de Deus manifeste seu poder”. Ou “esta geração não passará até que todas essas coisas se cumpram”. Jesus diz essas coisas num contexto de profecia apocalíptica, ou seja, em sua aparente expectativa de um fim iminente do mundo. É isso o que ele quer dizer com a manifestação do poder do Reino de Deus. No entanto, como bem sabemos, o mundo ainda está aqui. Você pode reinterpretar essas frases como referências à ressurreição do próprio Jesus, e não ao fim dos tempos, mas o sentido natural das frases infelizmente não é esse. Ou quando Jesus fala de Adão e Eva ou de Noé como se fossem figuras históricas, quando sabemos que eles não o são.
E aí? Bem, um jeito simples de resolver o problema todo é dizer “beleza, ele era só um profeta judeu e não tinha nada de divino”. OK, compreensível. No entanto, e falando agora exclusivamente com os cristãos como eu, uma compreensão teológica mais complexa do que significava a humanidade — e a divindade! — de Jesus nos ajuda a sair dessa, creio.
VERDADEIRO HOMEM
Nesse ponto, tomo de empréstimo uma ideia defendida pelo historiador, exegeta e padre americano John P. Meier, um dos maiores especialistas na figura do Jesus histórico na ativa hoje. Meier, em um de seus ensaios, comparou as pessoas que acham que Jesus, durante sua vida terrena, tinha conhecimento completo e preciso de todo o Universo e era incapaz de errar, aos monofisitas, hereges do fim da Antiguidade e do começo da Idade Média. Esses defensores de um Jesus humano e mesmo assim onisciente e onipotente seriam “criptomonofisitas”, ou seja, monofisitas ocultos.
Explicando melhor: os monofisitas acreditavam que Jesus tinha uma única “natureza” (ou “physis”, em grego), a divina. No fundo, no fundo, diziam eles, Jesus era apenas Deus, e não tinha nada de humano.
OK, mas essa não é a crença cristã que prevaleceu, em especial entre católicos, protestantes e ortodoxos. A que prevaleceu afirma que Jesus era “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. E, acrescenta Meier, verdadeiro judeu também. Afinal, diz ele, não dá para pensar num ser humano de verdade sem que ele seja produto, em grande parte, da sua época, do seu povo, da sua cultura. Sem isso, no fundo, você tira a humanidade dele, porque ninguém é “gente” isolado.
Pense um minutinho no que isso significa. Será que Jesus poderia mesmo ser onisciente e onipotente como a Primeira Pessoa da Santíssima Trindade — saber quantos átomos de silício existiam em cada grão de areia da praia do mar da Galileia, ou ser fluente em todas as línguas passadas, presentes e futuras da Terra — e ainda assim continuar sendo humano? Acho difícil.
Limitações de conhecimento e erros de julgamento, desse ponto de vista, seriam só outros exemplos da solidariedade radical com a condição humana que a Encarnação representou.
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