O enigma da cebola

Reinaldo José Lopes

Vamos continuar nossa saga para destrinchar o fenômeno do Design Inteligente (DI) e suas ramificações no Brasil. Caso você não tenha lido os textos de ontem, vale conferir os links abaixo.

Reportagem na Folha: congresso reúne defensores do Design Inteligente, versão modernizada do criacionismo

Entrevista com pesquisador da Universidade Federal do Amazonas e adepto do DI

A questão de 1 milhão de dólares, claro, é se algum dos argumentos dos defensores do DI faz algum sentido científico. Nos últimos tempos, os adeptos dessa tese têm centrado sua atenção sobre dados da biologia molecular e da genômica. Eles afirmam, por exemplo, que a ideia de que há grande quantidade de material não funcional no genoma humano é uma completa balela — pesquisas mais recentes, como a do projeto internacional Encode, teriam mostrado que praticamente todo o DNA foi cuidadosamente projetado para desempenhar funções precisas. E os adeptos do DI também atacam as evidências genômicas do parentesco entre o homem e os demais primatas, dizendo que a semelhança entre o nosso DNA e o dos chimpanzés não é de mais de 90%, mas estaria na casa de 70% ou até menos.

Daí o título deste post. Conversei sobre esses temas com dois gigantes da genômica brasileira, Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago (EUA), e Maria Cátira Bortolini, da UFRGS. E Nóbrega se saiu com uma comparação excelente — e perturbadora — que lança por terra a ideia de que os genomas são entidades tão arrumadinhas e inteligentemente projetadas quanto os defensores do DI dizem. Confiram o que Nóbrega me disse, em primeiro lugar.

Antes de mais nada, porém, um tiquinho de biologia molecular básica. Recordando: o DNA contém a “receita” para a produção de praticamente todas as moléculas do nosso organismo. Essa informação primeiro é “transcrita” na forma de outra molécula, o RNA. Depois, esse RNA é enviado para máquinas de produção de proteínas, os chamados ribossomos, os quais “traduzem” a informação presente no RNA numa versão “final”, a de proteínas. Várias coisas complicadas podem acontecer nesse caminho – o RNA pode ser “editado” de várias maneiras, por exemplo. Em geral, jogam-se foram os íntrons, regiões do RNA (e do DNA) que não correspondem a futuras proteínas, e montam-se os éxons, as regiões funcionais do material genético. Bem, vamos em frente! Fala, Marcelo!

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“Ninguém acredita que 85% do genoma é funcional. Há duas razões para que isso tenha se espalhado. A mais importante foi a irresponsabilidade dos membros do Encode ao divulgarem os resultados. O que eles disseram é que em 85% do genoma acontece algum processo bioquímico mensurável por técnicas que usamos no Encode.

Por exemplo, só 1% do genoma é traduzido em proteínas. Só que, gracas aos enormes íntrons entre os éxons de cada gene, a fração do genoma ocupada por genes é um terço. Isso significa que pelo menos um terço do genoma vira RNA (o que nós podemos detectar). Só que a grande maioria desse RNA é jogada fora — só uma fração é usada para fazer proteínas. É a partir desse tipo de análise que se chegou ao numero absurdo de 85%.

A segunda razão é que a mídia pegou o que os membros do Encode estavam dizendo e alteraram o contexto do que foi dito para dizer que 85% do genoma é funcional, importante.

Quem quiser defender que o genoma reflete um design inteligente, que não perderia tempo entulhando-o com lixo, vai precisar resolver o paradoxo da cebola. Se nosso genoma de 3 bilhões de letras reflete a dita complexidade organísmica, como então justificar o genoma da cebola, com 15 bilhões de letras? Será que é tão mais complicado colocar uma camada de cebola sobre a outra do que construir um cérebro humano?

Ou então como justificar que peixes como o baiacu tenham um genoma de 400 milhões de letras, e outros peixes, como os pulmonados, tenham um genoma de 150 bilhões de letras? Ambos são peixes, nadam, soltam bolhinhas. 600 vezes mais complexo?

E como então justificar o genoma da Polychaos dubium, com 670 bilhões de letras? É uma ameba. Será que uma ameba é 200 vezes mais complexa e sofisticada do que um criacionista?

Com relação à comparação entre humanos e chimpanzés, não sei do que estão falando. Não faz nenhum sentido falar em 70%. A identidade é de 98% quando se comparam SNPs [trocas de uma única letra de DNA] e cai para 94% quando se consideram as CNVs [variações no número de cópias de genes; um mesmo gene pode estar presente num número variável de cópias em indivíduos ou espécies diferentes].”

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Já Maria Cátira Bortolini preferiu não entrar no mérito da questão genômica e fez algumas observações mais gerais sobre o fenômeno do criacionismo.

“Não acho produtivo discutir com essa turma. É facilmente perceptível que as premissas fantasiosas que sustentam qualquer crença seguem da mesma forma, não muda nada, seja considerando argumentos de um criacionista supostamente sofisticado do design inteligente, seja de um que acredita em cobra falante. Que diferença faz? Eles interpretam do jeito que querem!

Não há argumento lógico, nunca haverá… 99% de semelhança ente chimpanzé e Homo sapiens ou 90% (não sei como andam esses números) — isso não muda nada. Basicamente para mim, não há muita saída a não ser aceitar que os humanos, boa parte deles, mesmo quando adultos, seguem com mentes estruturadas (provavelmente por predisposição genética) para interpretar o mundo de uma forma mágica, de modo que não podemos esperar deles racionalismo para interpretar fenômenos da natureza.

Acho muito mais interessante discutir porque há essas mentes predispostas geneticamente a seguirem pensando de maneira mágica, mesmo quando adultos. A natureza segue nos instigando… que bom.

Desculpa se segui por outros caminhos, é que de fato acho improdutivo usar argumentos científicos para debater crendices.”

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Por hoje é só, pessoal. Tem mais amanhã.

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