Tretas na origem da vida
Não é de hoje que os visitantes do blog têm manifestado muito interesse (aliás, um belicoso interesse, às vezes) pela questão da origem da vida no planeta, o que é muito natural levando em conta os temas que a gente aborda. Este post é uma brevíssima tentativa de colocar os pingos nos is. Certamente coisas importantes vão ficar de fora, mas ao menos vai ser um começo.
Primeiro detalhe importante: a rigor, a teoria da evolução não é uma teoria sobre a origem da vida na Terra, mas uma teoria sobre o que acontece depois que a vida surge, versando sobre os mecanismos de diversificação de espécies, aparecimento de adaptações que permitem a sobrevivência dessas espécies etc.
Dito isso, no entanto, o fato é que é comum e salutar a aplicação da lógica da biologia evolucionista aos primórdios da vida, em especial a ideia de seleção natural. Isso porque, a rigor, você não precisa de nada realmente “vivo” (seja lá o sentido no qual você aplica a palavra) para a seleção natural ocorrer. Só é preciso, na verdade, que você tenha entidades que possuam descendência com modificação. Ou seja: “coisas-mães” que produzam “coisas-filhas” um pouquinho diferentes de si próprias, e que essas diferenças sejam transmitidas de uma geração para outra e tenham algum impacto na capacidade desses entes de se propagar, de se multiplicar.
Ou seja: uma molécula ou conjunto de moléculas que, por qualquer motivo, seja capaz de levar a reações químicas que produzem cópias dela mesma com mais eficiência do que outras moléculas, e que transmita essa capacidade às “moléculas-filhas”, pode perfeitamente ser alvo de seleção natural, mesmo que esteja muito longe de integrar um ser vivo, ainda que muito simples.
É por isso que a gente pode pensar em seleção natural mesmo que não haja viva propriamente dita envolvida.
O ESPECTRO DO VITALISMO
Creio que outro problema sério pra explicar as questões que envolvem a origem da vida é o tal espectro do vitalismo — a ideia de que existe uma diferença essencial entre matéria viva e não viva.
É, temos de admitir, uma ideia muito natural — é o que os nossos instintos nos dizem toda vez que comparamos um grilo, ou mesmo uma bactéria, com uma pedra ou um copo d’água.
O problema é que os nossos instintos às vezes dão com os burros n’água. O que a bioquímica tem demonstrado desde o século 19 é que não existe essa diferença essencial entre matéria viva e não viva. Os componentes básicos do nosso organismo são átomos — de carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo, ferro e por aí vai — que existem por aí, em tudo quanto é lugar no Universo. Não existe esse negócio de “átomos mágicos de vida”.
Quando a gente sobe um nível, para o das moléculas simples, é a mesma coisa. Existem aminoácidos — os “tijolos” usados para construir as proteínas — em cometas e nuvens moleculares espaço afora, muito longe da Terra. O mesmo vale para moléculas da família do álcool. Essas matérias-primas da vida, portanto, não apenas podem surgir de forma espontânea como, até onde sabemos, de fato surgem o tempo todo.
NÍVEIS DE ORGANIZAÇÃO
As dúvidas começam a aparecer quando a gente sobe mais alguns níveis e chega às moléculas grandes e complexas com potencial para transmitir informação genética, como o DNA e o RNA. Na verdade, o RNA — para quem não sabe, é a molécula “irmã” do mais famoso DNA, que hoje costuma transmitir informações do seu parente mais famoso para as máquinas de produção de proteínas das células — é o astro das pesquisas na área, porque variações dele conseguem tanto guardar informação genética como coordenar a produção de cópias de si mesmo, coisa que o DNA não consegue fazer.
É verdade que ainda não há um modelo claro para explicar como a primeira molécula capaz de guardar informação genética e propagá-la chegou a esse ponto — os debates são complicadinhos, e é melhor deixá-los para outros posts. Mas a questão central é que, de novo, estamos falando de estruturas de matéria seguindo as mesmas leis que a matéria não viva segue.
Pode ser que tenha sido necessária uma intervenção sobrenatural para dar o “start” nesse processo? Bem, é dificílimo “desprovar” uma ideia como essa, mas o mais prudente me parece assumir que, se processos naturais guiaram tudo o que aconteceu até o ponto do surgimento das matérias-primas da vida, não há motivos para achar que processos naturais não continuaram em ação depois disso. No mínimo, não dá para jogar a toalha enquanto não se tenta entender bem, do ponto de vista natural, o que pode ter acontecido. Essa é a tarefa dos cientistas que estudam a origem da vida.
Não sei se ficou claro, mas isso também significa que esses cientistas não estão dizendo que, de repente, algo tão complicado quanto uma célula de bactéria ou mesmo uma mitocôndria (a atual usina de energia das células complexas) surgiu a partir de moléculas simples. É bem provável que o “primeiro ser vivo”, seja lá o que ele tenha sido, fosse algo bem mais simples. Não existem seres vivos simples no mundo hoje porque eles são o resultado de 4 bilhões de anos de evolução. Eles são modelos adequados para os primeiros seres vivos apenas até certo ponto.
NEM É PRECISO QUERER
Finalmente, outro ponto ligado ao vitalismo que mencionei lá em cima: nas fases iniciais da evolução da vida — e mesmo em fases relativamente avançadas — não é preciso nenhum tipo de consciência para que as coisas aconteçam. Se você coloca moléculas de RNA com os insumos adequados em tubos de ensaio hoje, a seleção natural come solta e aquele troço evolui.
Por um motivo simples que eu expliquei acima: o processo tem uma lógica meio matemática, inescapável. Por definição, quem conseguir se multiplicar melhor — ainda que inconscientemente — é quem vai deixar descendentes; quem não consegue deixa de participar da história. A gente está olhando o resultado final de um processo no qual essas capacidades foram se tornando cada vez mais azeitadas.
Isso rompe a ideia de que “vida só surge de vida”, como Pasteur postulou no século 19? Só de um jeito muito limitado. Lembrem-se: a abiogênese do século 19 falava em seres complexos, como moscas, surgindo direto de carne putrefata. Não dizia nada sobre moléculas orgânicas adquirindo capacidades básicas de replicação.
E por que isso não acontece mais hoje? Porque o planeta está tão cheio de micróbios que nenhuma molécula orgânica fica muito tempo dando sopa antes de ser devorada. E por que não dá para fazer em laboratório? Em certo sentido, já dá. Biólogos moleculares podem encomendar sequências de DNA pelo correio e montarem genomas com elas, inserindo-os em células e alterando radicalmente um micro-organismo. Montar a célula inteira, molécula por molécula, seria muito trabalhoso — e ainda falta conhecimento pra isso. Mas não tem nada de impossível na tarefa.
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