Mais sobre Francisco, 2
Vamos continuar com a nossa discussão sobre o aniversário de dois anos de pontificado do papa Francisco (leia mais a respeito aqui e aqui). Com a palavra, outro jovem e brilhante especialista na dinâmica do catolicismo moderno, Moisés Sbardelotto, doutorando da Unisinos (RS). Confira minha conversa com ele abaixo.
1)Nos últimos meses, em especial durante a viagem às Filipinas, a impressão que ficou é que Francisco resolveu mostrar que em matéria de moral sexual nada mudou nem mudará, principalmente quando criticou a ideologia “de gênero”, disse que não ter filhos é egoísmo, reforçou a defesa da encíclica “Humanae Vitae”, que veta os métodos anticoncepcionais artificiais… é o papa tentando mostrar à Igreja mais conservadora que também pode confiar nele? Se sim, vai funcionar?
Não acho que essas afirmações da entrevista apontem para a imutabilidade da doutrina, mas sim para a necessidade constante de uma releitura e atualização da própria doutrina a partir dos contextos específicos. A questão não se resume a tentar agradar qualquer possível ala da Igreja. O papa já demonstrou que busca garantir a unidade da Igreja, mas se movimentando livremente, sem construir consensos na base da articulação política. O que ele busca é reler e atualizar o Evangelho e a grande Tradição cristã para o século XXI, sem se prender a tradições historicamente localizadas, revolucionando, como Jesus, uma “mentalidade fechada no medo e autolimitada pelos preconceitos”, como disse ele na homilia aos novos cardeais, em fevereiro. E aí podemos ver o caráter liberacionista do que o papa disse naquela entrevista. Ele também defendeu que “os povos não devem perder a liberdade”. Falou de “impérios colonizadores” que tentam fazer com que os povos percam a sua identidade e tentam criar uniformidade. Falou ainda de “paternidade responsável”. Ou seja, em primeiro lugar, vem a liberdade de consciência, a liberdade dos indivíduos e dos povos em geral de assumirem as próprias responsabilidades. É o difícil equilíbrio entre as liberdades individuais e as responsabilidades perante o outro, a família, a comunidade, o povo. E isso também diz respeito ao divórcio, à homossexualidade, aos métodos contraceptivos: como conjugar liberdade e responsabilidade?
2)Dá pra ter alguma noção clara do que aconteceu na primeira fase do sínodo da família e o que vai acontecer na fase deste ano? Tem gente achando que o papa lançou balões de ensaio mais ousados na expectativa de que todo mundo embarcasse numa visão reformista mais agressiva, e não esperava uma reação tão forte do campo tradicionalista. O que ele fará se tudo se mantiver polarizado com vantagem numérica dos tradicionalistas?
O mais importante dos dois Sínodos está sendo o próprio processo sinodal, ou seja, um caminhar juntos (syn-odos, em grego) de toda a Igreja – clero, religiosos/as e leigos/as. Com esse longo caminho, Francisco quis um processo participativo de toda a Igreja do mundo inteiro. Ele mesmo disse, no discurso final do Sínodo passado, que teria ficado muito preocupado e triste “se todos tivessem estado de acordo ou ficassem taciturnos numa paz falsa e quietista”. Francisco quer uma Igreja sinodal, em debate franco, em constante reforma (semper reformanda), com tomadas de decisão descentralizadas. Na própria Evangelii gaudium ele defende a necessidade de “alguma autêntica autoridade doutrinal” para as Conferências Episcopais nacionais. E critica: “Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária” (n. 32). Por isso, ele não quer se arrogar o papel de “dono da verdade”: é a Igreja, como grande comunidade, como povo de Deus, que deve decidir, debatendo com franqueza e ouvindo com humildade. Por isso, mais do que tradicionalistas versus reformistas, mais do que reforma versus tradição, o Sínodo evidenciou as diferenças culturais entre as diversas Igrejas particulares. Mas é algo normal, esperado e positivo. Na visão de Francisco, as diferenças são valiosas: basta harmonizá-las. E ele, como papa, é o sinal da unidade da Igreja, garantia visível dessa unidade, não como um “senhor supremo, mas, ao contrário, o supremo servidor”, como disse no encerramento do Sínodo passado. Ao longo do processo, ele respeitou e vai continuar respeitando a autonomia do debate sinodal, até mesmo as possíveis polarizações. Mas o quadro é bem mais complexo, não sintetizável em apenas duas alas. Por isso, a tendência, a meu ver, é de que as decisões futuras em torno das práticas pastorais específicas deverão responder a casos concretos e respeitar as diferenças culturais de cada Igreja particular. É um salto de uma ética baseada em normas gerais e ideais a uma ética baseada na pessoa de carne e osso inserida no seu contexto de relações.
3)No último consistório tivemos cardeais de Tonga, da Etiópia, de Cabo Verde… por um lado isso mostra a disposição de globalizar cada vez mais o catolicismo. Por outro há quem veja nisso um problema político porque esses cardeais vão chegar isolados e com pouca experiência de como as coisas funcionam em Roma. Logo, dificilmente virarão um “bloco Francisco” capaz de apoiar a visão do papa para a Igreja. Como você vê esse dilema?
O último Anuário Pontifício (2014) aponta que crescimento católico ocorre no Sul do mundo: a África teve o maior aumento no número de fiéis (4,3%), e a Ásia é a região do globo em que se encontra o maior crescimento de vocações sacerdotais e religiosas. Francisco, com seus gestos, palavras e decisões, está “des-norteando” ainda mais a Igreja: ele se volta para os povos do Sul menosprezado, tirando da agenda eclesial a centralidade do Norte. E, ao mesmo tempo, com as suas viagens e as suas escolhas cardinalícias, chama a atenção para a vida viva e vivida no Oriente: e, assim, “re-orienta” a Igreja. Por isso, os cardeais que vêm dessas regiões até hoje menosprezadas no governo da Igreja trazem demandas novas e experiências cristãs diferenciadas, principalmente por serem “periferias eclesiais”. E foram escolhidos justamente por isso, porque, como disse o papa na Evangelii gaudium, “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural” (EG 116). Essas escolhas cardinalícias – antes de comporem um grupo de apoio político – querem diversificar e descentralizar o catolicismo romano, torná-lo menos “esférico” e mais “poliédrico”, para retomar a imagem usada pelo papa. E a “agenda” que esse possível “bloco Francisco” deve apoiar ficou bem clara na homilia do papa na missa com os novos cardeais: “É no evangelho dos marginalizados que se joga, se descobre e se revela a nossa credibilidade”. Mais do que uma agenda política pessoal, Francisco tem em vista o papel da Igreja na sociedade contemporânea, cujo caminho é a “misericórdia e a integração” dos marginalizados, como ele mesmo disse aos novos cardeais, em fevereiro.
4)Pra terminar: Francisco mudou de fato a Igreja até agora? Se sim, em quê? (cite UMA coisa que pra você seja a mais importante).
As congregações gerais do conclave passado demandaram uma mudança da Igreja. E Francisco, eleito papa, mudou o modo de mudar a Igreja: não partindo de uma reforma institucional ou estrutural, mas convidando a uma “reforma interior” de cada católico e católica, começando pelos membros da alta hierarquia, ou seja, partindo de uma “reforma do coração”. Por isso, é uma revolução copernicana. Como Copérnico, Francisco desloca o eixo central da Igreja: o que importa não é a instituição histórico-social, mas sim a pessoa de Jesus, que deve ser o centro da Igreja. Mais do que uma descentralização geográfica, há um movimento ainda mais radical: o autodescentramento. Evitar a autorreferencialidade. Assim, o primeiro papa latino-americano relembra que o centro eclesial não é Roma, nem a Europa, nem o Ocidente, muito menos o papa ou qualquer cardeal: o centro é “só Cristo”, como disse Francisco aos novos cardeais, em fevereiro. Ele pede cada vez mais uma Igreja não autorreferencial, “em saída”, de “portas abertas” não apenas para que as pessoas entrem, mas principalmente para que Jesus saia, ou seja, para que a experiência cristã não se “guetize”. Francisco não quer uma Igreja nem como “minoria criativa” nem como “maioria massificada”. Como bom jesuíta, Francisco quer uma Igreja que saiba discernir os “sinais dos tempos” e que seja livre na sua ação, sem amarras institucionais, sociais, culturais, históricas. Uma Igreja aberta às surpresas de Deus e ao Deus das surpresas, como ele mesmo afirmou.
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