A verdade late

Reinaldo José Lopes

Já que entrei numas de atacar  as “hidras de Lerna” nascidas das concepções erradas que muita gente tem sobre a teoria da evolução (para mais detalhes sobre esse conceito, confira por obséquio este post recente), talvez seja bacana partir para cima de mais uma serpente mitológica de muitas cabeças. Trata-se da ideia de que, mesmo após décadas e décadas de experimentos de laboratório com todo tipo de bicho, a gente nunca viu uma nova espécie nascendo. Logo, dizem os críticos da teoria da evolução, as espécies são estáticas: podem passar bilhões de anos que elas continuarãm alteradas, restritas ao seu “tipo” original.

Não vou discutir a qualidade desse raciocínio. Quero apenas recordar ao dileto leitor que, na verdade, o ser humano realizou há poucos milhares de anos um experimento (não muito controlado) que sim, para todos os efeitos, criou uma espécie nova. Aliás, uma espécie com uma diversidade morfológica tão maluca que não há paralelos para ela no reino animal. A verdade late, minha gente, e talvez esteja latindo no seu quintal neste exato momento. Estou falando, é claro, do cão doméstico.

Poucos milhares de anos atrás, não existiam cachorros domesticados planeta afora, mas apenas lobos e, claro, uma grande diversidade de outros canídeos selvagens (os lobos nos interessam porque nossos cães descendem apenas deles). Hoje, por outro lado, a variedade de raças de cães chega às centenas, e foi obtida por um método, a seleção artificial, que tem poucas diferenças em relação ao “método” que, para a imensa maioria dos biólogos, é o principal responsável pela diversidade de espécies do planeta hoje.

Estamos falando, é claro, da seleção natural, que não passa do sucesso reprodutivo mais elevado de certos seres vivos, derivado de certas características que favorecem sua sobrevivência e capacidade de deixar descendência. Bom, é exatamente isso o que os criadores de cães sempre fizeram ao longa da história, consciente ou inconscientemente: selecione os bichos desejados, com base em alguma característica que você ache interessante (velocidade, pelagem bonita, capacidade de capturar raposas, o diabo a quatro) e realize cruzamentos apenas desses bichos, deixando os demais cães na seca. E pronto, em menos tempo do que você imagina, eis que surge uma raça de cachorro.

Isso pode soar banal, mas não é, de jeito nenhum. Eis abaixo uma amostra da diversidade morfológica — de tipos de anatomia e de corpo — dos canídeos selvagens atuais. Tem o lobo-guará:

O lobo-guará, um clássico brasileiro (Crédito: Creative Commons)

O lobo-guará, um clássico brasileiro (Crédito: Creative Commons)

A raposa-de-orelha-de-morcego africana:

Que orelhas grandes você tem! (Crédito: Creative Commons)
Que orelhas grandes você tem! (Crédito: Creative Commons)

E não poderíamos esquecer do mabeco, ou cão-selvagem-africano:

Mabeco: tenha medo. Tenha muito medo. (Crédito: Creative Commons)
Mabeco: tenha medo. Tenha muito medo. (Crédito: Creative Commons)

 

Agora, vamos pensar um instantinho. Todos os bichos cujas fotos eu estampei acima pertencem a espécies diferentes — aliás, a gêneros diferentes (lembre-se, gênero é um grupo mais amplo, correspondente à primeira parte do nome científico: neandertais e humanos modernos estão no mesmo gênero, o Homo, mas em espécies diferentes, neanderthalensissapiens, respectivamente). Milhões de anos de trajetórias evolutivas divergentes separam essa cachorrada selvagem. Não adianta botá-los pra cruzar que dali não vai sair nada.

Esses bichos provavelmente são os extremos da distribuição morfológica dos canídeos, ou seja, dos “tipos de corpo” existentes nesse grupo de animais. Acontece que não tem como resumir esses extremos com três fotos quando o assunto é o cão doméstico. O melhor que dá pra fazer é, por exemplo, dar uma olhada neste enorme mapa de raças de cachorros pelo mundo.

Dá pra ver a diferença? Em 10 mil anos ou pouco mais do que isso — aliás, em algumas centenas de anos, já que a maioria das raças atuais é resultado de cruzamentos bem recentes –, nós conseguimos produzir mais diversidade morfológica do que em DEZENAS DE MILHÕES DE ANOS de evolução dos canídeos. Não é pouca porcaria. E note que aspectos muito importantes dessa diversidade simplesmente não existem entre canídeos selvagens. Não existe nenhuma espécie natural do grupo com focinho encurtado, por exemplo — como o dos buldogues ou pugs ou diversas outras raças. É como se um lobo ganhasse focinho de gato, gente.

Alguém poderia dizer que, apesar de tanta variação, os cães continuam sendo capazes de cruzar entre si e com lobos. Bem, mais ou menos. Nos extremos da variação, até por questões mecânicas, conseguimos dificultar bastante as coisas (pense no que seria preciso para cruzar uma fêmea de poodle toy com um macho de dogue alemão…). Isolamento reprodutivo, pelo que a gente vê em outras espécies, é mais questão de modificações genéticas que se acumulam lentamente por processos aleatórios, e pra isso ainda não tivemos tempo.

E isso porque ainda nem falei da parte comportamental. O abismo de comportamento e “mentalidade” entre os cães domésticos e os selvagens é ridículo — só pra citar um exemplo recente, eles são a única espécie animal conhecida que é capaz de reconhecer as expressões faciais de membros de outra espécie (no caso, nós). Nós somos o “ambiente natural” dos cães, no fundo.

Então não dá pra criar uma nova espécie artificialmente? Pense de novo.

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