Um crucificado chamado João
Ou, em hebraico, Yehohanan ben Hagkol (João, filho de Hagkol). Não sabemos nada sobre a história de vida ou sobre a personalidade desse rapaz judeu, executado pouco antes de completar 30 anos de idade (a julgar pela estrutura de seus ossos), mas o mero fato de que seu esqueleto foi encontrado por arqueólogos modernos já é impactante. Trata-se da única evidência direta do suplício da crucificação no mundo antigo.
A descoberta ocorreu originalmente em 1968, quando construtores trabalhavam num bairro de Jerusalém Oriental e acabaram desencavando por acaso um ossuário (espécie de caixão de pedra usado para sepultamentos secundários, ou seja, para guardar os ossos dos mortos depois que o resto do cadáver já se decompôs). O ossuário trazia a inscrição em hebraico com o nome do moço (em hebraico mesmo, já que a palavra usada para “filho” é “ben”; se fosse em aramaico, seria “bar”). Acredita-se que o jovem teria morrido entre os anos 50 e 70 d.C.
A pista crucial de que Yehohanan/João morreu crucificado é a presença de um prego de 11,5 cm atravessando o osso do calcanhar direito, com fragmentos de madeira no lado de fora e no lado de dentro do osso. Provavelmente, isso significa que os executores colocaram uma tabuinha em cima do pé do rapaz antes de martelar, com o objetivo de atrapalhar os esforços dele de se desvencilhar do prego, o qual atravessou o pé e se fixou na madeira da cruz propriamente dita. Lá dentro, o prego entortou ao se enterrar num nó da madeira.
INTERPRETAÇÃO COMPLEXA
A história da interpretação do achado arqueológico, no entanto, é complexa e bem interessante. O primeiro a analisar os ossos de Yehohanan, um pesquisador chamado Nicu Haas, da Universidade Hebraica de Jerusalém, avaliou que o prego teria atravessado tanto o “poste” da cruz quanto os dois pés do rapaz, de modo que os carrascos teriam colocado as pernas dele em paralelo dos dois lados da madeira. Além disso, Haas também achou ter visto sinais de que dois pregos, hoje perdidos, teriam sido enfiados nos antebraços de João, prendendo-o a um patíbulo horizontal com os braços estendidos, portanto.
Mais tarde, Joe Zias, do Departamento de Antiguidades de Israel, e Eliezer Sekeles, do Centro Médico Hadassah, reanalisaram os restos mortais e concluíram que, para começar, o prego não era comprido o suficiente para atravessar os dois pés. Além disso, os supostos indícios de pregos nos antebraços parecem mais contusões normais. Por isso, segundo eles, não daria pra descartar a hipótese de que Yehohanan foi morto numa “crux simplex”, ou seja, uma cruz sem barra horizontal — nesse caso, as mãos poderiam ter sido simplesmente amarradas acima da cabeça, com cordas.
Um último enigma: por que só temos esse corpo de crucificado se as fontes literárias da Antiguidade afirmam que os romanos crucificaram milhares de judeus ao longo do primeiro século da Era Cristã? O possível motivo mais tétrico é o de que raramente as famílias dos crucificados tinham a chance de lhes dar um enterro decente. O mais comum é que seus corpos fossem jogados em valas comuns ou mesmo deixados por meses à mostra, para serem devorados por cães e aves de rapina. Por outro lado, também havia o costume de usar os pregos como amuletos (pois é), o que explicaria o sumiço deles de túmulos.
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