Dentucinha, mas nem tão gorducha

Reinaldo José Lopes

Achei que seria legal dar uma rápida passada por aqui para lembrar que minha coluna de ontem na versão impressa da Folha conseguiu juntar psicologia evolucionista e Turma da Mônica, coisa que a gente não vê todo dia, ouso dizer. A ideia é que nossas preferências pelo que é fofo, moldadas pela evolução, é que transformaram a Mônica na figurinha adorável de hoje. O texto é, em parte, uma homenagem ao saudoso paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay Gould. Você pode conferir o texto original dele, em inglês, sobre um tema parecido (Mickey Mouse, veja só) clicando aqui.

Aos interessados em conferir como a imagem da personagem de Mauricio de Sousa evoluiu, este link é bastante útil.

E, como cereja do bolo, aqui vai um capítulo do meu primeiro livro, “Além de Darwin”, sobre o mesmo tema. Divirtam-se (ou “diviltam-se”, como “dilia” o Cebolinha)!

 

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Carinhas de bebê
O que há de irresistível num rostinho de filhote?

É sempre horrível quando você descobre que virou alvo de uma chantagem emocional, daquelas bem safadas, e caiu feito um patinho. Estou me referindo a um sujeito felpudo cuja história comoveu o mundo e garantiu a audiência de muitas TVs, inúmeros sites e outros meios de comunicação durante meses em 2007. Aliás, ouso dizer que, se você passou por esse ano fatídico sem ter ouvido falar ao menos uma vez da saga do ursinho Knut, provavelmente estava em animação suspensa ou temporariamente abduzido em algum deserto de Marte.

Caso você seja um desses raros casos, aqui vai um resumo rápido da história toda. No começo de 2007, Knut era um filhote recém-nascido de urso-polar, órfão de pai e abandonado pela mãe, cuja criação acabou ficando a cargo de um tratador do Zoológico de Berlim. Por si só, a história triste bastaria para garantir ao pequeno ursídeo seus 15 minutos de fama, estampado em fotos lacrimosas mundo afora.

Mas Knut logo se tornou o pivô de uma grita internacional que nem casos de genocídio costumam provocar. Tudo porque ninguém conseguia engolir a proposta, feita por alguns ativistas dos direitos dos animais alemães, de sacrificar o bichinho. (O argumento deles: Knut teria uma criação “não-natural” e sofreria demais com a separação inevitável de seu tratador; portanto, seria melhor “colocá-lo para dormir”). Bastou que a ideia fosse levantada – e olha que o Zoológico de Berlim nem quis discutir a proposta – para que gente do mundo todo tomasse a mídia de assalto e exigisse a proteção incondicional da integridade física do ursinho. Como é que alguém seria capaz de erguer a mão contra uma fofura daquelas? Era simplesmente desumano.

Vamos admitir: qualquer pessoa normal (OK, menos ativistas alemães) se derrete diante de filhotes como Knut. É um troço visceral. Daí a minha acusação feita lá em cima – por favor, não entenda errado – de chantagem emocional. A carinha de um urso-polar bebê é o equivalente psicológico de um golpe baixo, atravessa as nossas defesas, comove corações de pedra. Em certo sentido, não é exagero dizer que a mente humana está programada para gostar do ursinho Knut.

Mas essa propriedade da nossa mente tem repercussões muito mais profundas do que uma vontade louca de encher ativistas alemães de pancada. Há indícios intrigantes de que a predileção por traços fofos moldou coisas tão díspares quanto a aparência dos animais domésticos e o processo que conduz os seres humanos do nascimento à idade adulta. Como? Acompanhe nos próximos parágrafos, intrépido leitor.

Diz um ditado oriental que o começo da sabedoria é dar o nome certo às coisas. Portanto, anote aí na sua caderneta: pedomorfose. É grego. Quer dizer, literalmente, “forma de menino”, e é um termo empregado pelos biólogos do desenvolvimento para definir a retenção de características infantis em animais adultos.

Você provavelmente está se perguntando por que diabos um bicho maduro iria querer ter cara de criança. Mas, antes, vamos dar uma boa olhada em Knut (se uma busca na internet não ajudar você a refrescar a memória, pense em qualquer ursinho de pelúcia), recordar todos os outros filhotes fofinhos (bebês humanos incluídos) que já vimos e tentar generalizar. Há alguma coisa em comum entre todos eles? A resposta é um enfático sim. Os padrões de desenvolvimento dos filhotes de vertebrados são surpreendentemente parecidos entre si, desde os peixes até o Homo sapiens, graças à origem evolutiva comum que compartilhamos. Por isso, além da óbvia pequenez, muitos dos nossos filhotes têm a cabeça desproporcionalmente grande em relação ao resto do corpo, olhos muito grandes e focinhos curtos. Entre os mamíferos, o pacote é completado por pêlos e pele mais macios e, às vezes, mais claros, além de gordurinhas que tendem a gerar aquele aspecto fofinho.

Características visualmente tão óbvias têm uma função também óbvia. Nas imortais palavras de Baby, da série televisiva Família Dinossauros, a mensagem que eles passam é “PRECISA ME AMAR! PRECISA ME AMAR!”. Os traços infantis são sinalizadores imediatos de vulnerabilidade e necessidade de cuidados, e as espécies de vertebrado entre as quais a ajuda dos pais é essencial para que o bebê chegue à idade adulta estão geneticamente programadas para responder favoravelmente a eles. (Aliás, os bebês-dinossauros da vida real, conforme o testemunho de diversos ovos e filhotes fossilizados, tinham cabeça e olhos enormes. Por essas e outras razões, que vamos ter ocasião de discutir quando falarmos sobre a relação evolutiva entre dinos e aves, acredita-se que os pais-dinossauros cuidavam de sua prole por um bom tempo após o nascimento.) Pode ser que originalmente essa aparência tenha sido só um subproduto do desenvolvimento embrionário – afinal, muitos vertebrados não cuidam de seus filhotes -, mas, uma vez estabelecida geneticamente, ficou fácil utilizá-la como sinalizador, e os que a possuíam em grau elevado tinham mais chance de ser paparicados pela mamãe e sobreviver. Estabeleceu-se uma espécie de corrida armamentista ou, para usar um termo ainda mais específico, um feedback positivo: quanto mais clara a sinalização de vulnerabilidade, mais o instinto materno/paterno era despertado, de forma que a geração seguinte tinha ainda mais probabilidade de usar esses sinais em sua aparência física. Ser fofo fazia bem para a saúde e para o sucesso evolutivo.

Que o digam os animais domésticos, em especial os nossos cães, que hoje alcançam uma população inacreditavelmente mais numerosa do que a que teriam se tivessem permanecido selvagens. Um grande volume de pesquisas mostra que os bichos domesticados tendem a ser uma versão pedomórfica – voltamos à pedomorfose – de seus ancestrais selvagens. Inconscientemente, nossos ancestrais tendiam a selecionar para reprodução suas mascotes com aparência mais infantil, em parte porque ela tende a estar correlacionada com outras características desejáveis, como a docilidade.

O caso dos cachorros, como eu disse, é emblemático. Traços como orelhas caídas, rabinhos que abanam, pêlo com manchas e propensão a latir em vez de uivar são encontrados não nos lobos adultos (a espécie ancestral do cão doméstico), mas entre os filhotes de lobo. Uma experiência fascinante, que começou há décadas na Rússia e ainda está em curso, mostra como o fenômeno pode ter acontecido. Os cientistas começaram a selecionar raposas unicamente pela docilidade (outro traço pedomórfico): as que eram mais mansas e menos ariscas eram escolhidas para se reproduzir. Gerações depois, o resultado são raposas de orelhas caídas e pêlo manchado, que mais parecem cachorros.

Por fim, algumas características intrigantes da biologia humana indicam que nós somos quase uma versão pedomórfica de nossos primos de primeiro grau, os grandes macacos. Comparações detalhadas entre o processo de crescimento de chimpanzés e pessoas indicam que nossos crânios são muito mais parecidos com os de bebês-macacos do que com os de primatas adultos. Há quem veja em outros elementos, como os nossos escassos pêlos, traços pedomórficos. A nossa preferência por esse tipo de traço é tamanha que ela parece influenciar até a evolução cultural, ao menos de acordo com uma análise divertidíssima do saudoso paleontólogo e divulgador científico Stephen Jay Gould (1941-2002). Gould analisou um dos ícones da fofice mundial, Mickey Mouse em pessoa, mostrando que o famoso camundongo “nasceu” com traços um pouco mais adultos e foi s e tornando progressivamente mais pedomórfico conforme os anos passavam. Inconsciente ou conscientemente, os desenhistas da Disney foram tornando o personagem cada vez mais agradável aos olhos humanos – o que significou dar a ele traços mais infantis.

Ao que parece, a base genética para esse tipo de transformação é a mudança no ritmo do desenvolvimento, com uma espécie de atraso estratégico: alterações morfológicas que conduziriam à formação de uma “cara” de adulto acontecem mais tarde do que o normal, ou até são adiadas indefinidamente. Há um grau inevitável de especulação na hora de tentar explicar o porquê disso em organismos adultos, mas uma teoria interessante aposta na chamada seleção sexual: os traços infantilizados, com seu ar de “me ame e me proteja, por favor”, teriam sido considerados atraentes por parceiros sexuais e se tornado dominantes ao longo da evolução humana. Também sinalizariam falta de agressividade, confiabilidade e até fidelidade. Chame isso de “sobrevivência dos mais fofos”, se preferir.

Portanto, da próxima vez que você vir sua esposa ou namorada se derretendo por causa de Knut ou qualquer outro animalzinho que ainda está nos cueiros, deixe de lado o ciúme e aceite a chantagem emocional. É por essas e outras que sua consorte gosta de chamar você de “neném” de vez em quando.

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