A grande família divina
Meu próximo livro, que está na reta final de produção, vai se chamar “Como Deus Nasceu” — uma breve história do monoteísmo, digamos. Gostaria de compartilhar com vocês um trechinho abaixo. Feliz Dia das Mães pra todo mundo!
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As tabuletas de argila de Ugarit, no norte da Síria, repletas de escritos feitos com uma forma peculiar de alfabeto, são as principais responsáveis por nos dar uma ideia do que realmente se passava na cabeça dos cananeus da Idade do Bronze — o povo a partir do qual surgiria o antigo Israel. Tais textos contêm um riquíssimo conjunto de mitos e lendas, que são relatados numa linguagem muito próxima à empregada pela Bíblia – não apenas porque os idiomas hebraico e ugarítico são primos de primeiro grau, mas também porque a gramática, as expressões e os artifícios poéticos muitas vezes são os mesmos.
O que mais nos interessa, no entanto, é o conteúdo desses mitos, porque as divindades de Ugarit ecoam de forma impressionante certos aspectos de Iahweh, o Deus israelita. Antes de chegarmos a esse ponto crucial, vale a pena descrever, em linhas gerais, a grande família divina que reinava sobre a antiga cidade-Estado de Ugarit – e provavelmente também sobre outras cidades cananeias que não nos legaram seus mitos por escrito.
Comecemos pelo topo da pirâmide, com El, ou simplesmente “o deus”, significado básico de seu nome, como já vimos no começo deste capítulo. Os ateus que costumam ridicularizar a imagem tradicional que certas pessoas têm de Deus, a de um velho barbudo que mora no céu, provavelmente adorariam essa divindade cananeia, porque isso é exatamente o que ele é: um deus idoso e barbudão. El é o grande pai dos deuses e dos homens, o monarca venerável que preside o conselho divino. Um de seus apelidos mais comuns é “Touro El”, simbolizando tanto seu poder de guerreiro quanto, provavelmente, sua potência sexual. Ele não tem propriamente uma casa, mas sim uma tenda, talvez como espelho dos líderes patriarcais nômades que o adoravam. Sua principal consorte e esposa é Asherah, uma deusa-mãe aparentemente ligada à fertilidade.
A coisa começa a ficar interessante quando passamos para o nível imediatamente abaixo de El na aristocracia divina de Ugarit, porque o principal membro desse estrato da pirâmide é um velho conhecido de qualquer leitor do Antigo Testamento. Seu nome é Baal, e os profetas bíblicos não cessam de atacar os israelitas infiéis que ousam aderir ao culto do sujeito. Se El é o velho e sábio imperador do Universo, Baal é o jovem príncipe guerreiro (embora a paternidade do rapaz não esteja muito clara: certos textos antigos, como os da própria Ugarit, afirmam que ele não é filho de El, mas sim de outro deus, Dagan; de qualquer maneira, é como se El fosse seu pai “honorário”). Os raios, os trovões e as tempestades são as armas de Baal e simbolizam seu poder bélico e sua impetuosidade. Sua casa (ou templo), feita com madeira de cedro, fica no alto do monte Safon, na Síria (atual monte Aqraa), mais ou menos como Zeus e sua morada no alto do monte Olimpo. Ele recebe o direito de habitar sua mansão no topo da montanha depois de enfrentar e vencer Yamm, o deus do mar, e seus temíveis monstros marinhos.
As narrativas ugaríticas sobre Baal, porém, não falam apenas de suas vitórias gloriosas, mas também de sua derrota no combate com Mot, o deus da morte, o qual, como você talvez tenha imaginado, é capaz de matar as próprias divindades. Mot acaba devorando Baal, como se ele fosse um mortal qualquer. O deus derrotado, porém, é vingado por sua irmã (e, segundo certas interpretações dos textos de Ugarit, também esposa) Anat, uma feroz deusa guerreira que tem o cativante hábito de fazer colares e cintos com as mãos e as cabeças decepadas de seus inimigos.
Após cometer toda sorte de atrocidade com o cadáver de Mot (moendo-o, por exemplo), Anat presencia a ressurreição tanto de seu irmão quanto de seu arqui-inimigo. Baal e Mot realizam então um tira-teima do duelo anterior, mas desta vez quem sai vencedor é o deus da tempestade, que assume de vez o papel de governante do Universo, delegado a ele pelo velho El. Acredita-se que a narrativa da morte e ressurreição de Baal se encaixe num padrão tradicional de mitos sobre deuses que morrem e voltam à vida, simbolizando o ciclo agrícola – a ideia de que os grãos de trigo, enterrados no solo, precisam “morrer” primeiro para depois produzir a exuberância da colheita.
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