Querelas pré-históricas

Reinaldo José Lopes

walter nevesEscrevi para esta Folha, não faz muito tempo, uma reportagem sobre o futuro aparentemente incerto do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP, que se vê diante da vindoura aposentadoria de seu coordenador, o bioantropólogo Walter Neves (saiba mais sobre o trabalho da equipe dele dando uma olhada no infográfico à esquerda). O tema é naturalmente polêmico, considerando tanto a crise financeira pela qual passa a maior universidade do país quanto a questão de priorizar as verbas para contratar um pesquisador com o mesmo perfil de Neves ou direcioná-las para alguém que trabalhe com outra área.

Em nome da transparência, gostaria de aproveitar o espaço do blog para publicar na íntegra, em primeiro lugar, a entrevista por e-mail que fiz com o chefe do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, Luis Eduardo Soares Netto. O laboratório de Neves integra esse departamento, e o bioantropólogo apontou como uma das causas de sua preocupação o desinteresse de seus colegas pelos estudos na área de evolução humana. Não pude contemplar todos os argumentos do professor Soares Netto em minha reportagem, por questão de espaço, então vou reproduzi-los aqui.

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“Caro Reinaldo,

I – Obrigado pelo contato. É uma pena ter que dar uma resposta em tão curto espaço de tempo. Talvez você não tenha a dimensão de como um docente da USP que se sujeita ser Chefe de Departamento é tão pressionado não só pelas várias atribuições administrativas, mas também as atribuições de ensino , pesquisa e extensão dos demais. Não é qualquer docente da USP e do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva que tem esse engajamento institucional.

II – O Dr. Neves mencionou sobre sua intenção de aposentadoria e a continuidade dos trabalhos do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (e das valiosas coleções que ele abriga) é sim uma preocupação muito grande (estranho ele não ter mencionado isso para você).

Sempre que docentes se aposentam é sempre um grande problema providenciar a substituição. Especialmente quando o docente em questão é um profissional da qualidade do Dr. Neves. Tem sido um grande privilégio para o Departamento contar com um docente como o Dr. Neves que, por exemplo, coordena atividades como a exposição “Do Macaco ao Homem”, em parceria com o Catavento Cultural (a exibição científica mais visitada em 2014). O espaço aqui é restrito para enumerar as várias contribuições científicas do Dr. Neves, muitas delas com grande repercussão na mídia.

Porém, existem várias limitações institucionais para ações de um Chefe de Departamento (creio que o Dr. Neves está ciente disso e novamente estranho ele não mencionar isso para você), algumas descritas abaixo:

(1) O Chefe de Departamento executa políticas definidas pelo Conselho de Departamento. Em alguns momentos , as áreas nas quais os concursos são abertos são definidas em fóruns mais amplos que contam com a participação de vários, se não todos, docentes do Departamento.

Sem duvida nesses momentos, foi discutida a importância de bioantropologia.

Por outro lado, o Conselho de Departamento tem que atender a múltiplas demandas de ensino e pesquisa . A maioria das disciplinas sob responsabilidade do Departamento são na área de Genética ; Genética Humana e Evolução; além de Biologia Celular, Biologia Molecular e Bio-Antropologia. Além disso, recentemente dentro da estrutura curricular foi criado o núcleo de Licenciatura que só teve uma docente alocada até o momento.

Não é tarefa trivial conciliar essas várias demandas.

(2) O ingresso de docentes nas universidades públicas estaduais se dá através de concurso público. Isso é regimental. Não há nada que um Chefe de Departamento possa fazer nesse sentido.

Mesmo que um concurso seja aberto na área de evolução humana e paleoantropologia, nada garante que seja contratado um docente com perfil para dar continuidade aos trabalhos do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos.

(3) Além do Dr. Neves, o Departamento no momento conta com dois outros docentes que atuam na área de Bioantropologia; além de uma docente recentemente contratada (penúltimo concurso), cuja pesquisa tem interface com evolução humana.

Apesar disso, nada garante que nenhum deles possa dar continuidade aos trabalhos do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, o que eu posso fazer a respeito?

(4) Como você sabe bem, a USP passa por uma série crise financeira e a abertura de novas vagas está bastante difícil. Mais uma vez, existe pouco espaço de ação para o Chefe de Departamento nessa direção.

Talvez haja muitos outros pontos que eu poderia listar e devo estar me esquecendo que limitam a ação do Chefe de Departamento. De fato, me sinto muito impotente diante de todo esse quadro. Sem dúvida a demanda do Dr. Neves é prioritária, mas infelizmente está fora do meu alcance resolvê-la.”

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Logo após a publicação da reportagem, recebi uma mensagem do antropólogo André Strauss, brasileiro que trabalha no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, sobre o mesmo tema. Vale a pena ler as considerações dele sobre a questão. Confiram abaixo.

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“Na edição de sábado da Folha, Reinaldo Lopes colocou em pauta a questão da continuidade do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (LEEH). Fundado por Walter Neves, trata-se da única instituição que se dedica ao estudo da Evolução Humana no Brasil. Além de sua atuação como motor intelectual da bioantropologia latino-americana, o LEEH também tem fundamental importância na conservação do patrimônio arqueológico nacional, tendo em sua reserva técnica remanescentes esqueléticos humanos datados em mais de 9000 anos.

De acordo com a matéria de sábado, o LEEH estaria com seus dias contados devido à eminente aposentadoria de seu fundador e à falta de interesse dos seus pares no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva (GBE) pelo estudo da Evolução Humana. Se for esse o caso trata-se, a meu ver, de uma inexplicável contradição. Dentre todas as áreas da ciência é difícil imaginar três campos que estejam mais intimamente relacionados do que Evolução Humana, Genética e Biologia Evolutiva. Não seria exagero afirmar que nos dias de hoje as duas áreas que mais contribuem para o avanço do nosso conhecimento sobre a Evolução Humana são justamente a genética e a biologia evolutiva. Exemplo disso é o Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha.

Foi graças à união entre geneticistas, biólogos evolutivos, arqueólogos e antropólogos que hoje nós conhecemos o genoma completo do Neandertal e que descobrimos, a partir de informações unicamente genéticas, uma espécie ancestral até então desconhecida (Denisovanos). Na América do Sul, questões equivalentes que se referem à identidade dos primeiros colonizadores, podem se beneficiar de uma abordagem interdisciplinar análoga. Vale lembrar que a origem dos primeiros americanos, questão central para nós que aqui residimos, é clássica dentro dos estudos de Evolução Humana. Numa época onde o DNA antigo apresenta-se como uma das grandes promessas para elucidar questões seculares sobre a origem do Homem Americano, uma abordagem integrativa dentro do GBE é um caminho natural a ser trilhado. Da nossa parte iremos, daqui para frente, aumentar os esforços de diálogo com os nossos pares para enfatizar essas linhas de pesquisa que tanto nos aproximam. Seja como for, o LEEH não pode deixar de existir.”

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