Esquerdismo cristão?

Reinaldo José Lopes
Evo, Francisco e o crucifixo para lá de esquisito (Crédito: Associated Press)
Evo, Francisco e o crucifixo para lá de esquisito (Crédito: Associated Press)

A recente visita do papa Francisco à América do Sul deu o que falar, em especial por causa do esquisitíssimo híbrido de crucifixo e símbolo comunista ofertado ao pontífice pelo presidente boliviano, Evo Morales. Francisco estranhou o presente, mas acabou por aceitá-lo. Para críticos do papa, porém, o mais grave foi o teor anticapitalista (ou mesmo “comunista”) dos discursos de Jorge Bergoglio. Em seu blog, Reinaldo Azevedo, colunista da “Veja” e desta Folha, apesar de se declarar católico, afirmou que o “dito papa Francisco” não o representa. Acrescentou ainda que o pontífice era “Sua, não mais minha, Santidade”. Chegou a comparar o teor dos discursos do papa ao que costuma dizer “Kim Jong-un, aquele gordinho tarado que tiraniza a Coreia do Norte”.

Para Azevedo, o grande problema dos discursos do papa está nas críticas aos abusos do capitalismo e da propriedade privada, o que ele enxerga como uma aberração marxista e comunista que distorce a tradição cristã. Gostaria de aproveitar o espaço para que a gente deixe as preferências políticas de lado e examine se, de fato, o papa saiu da linha cristã original ao criticar o capitalismo.

Vamos por partes, citando o texto de Azevedo.

“Evocando um igualitarismo pedestre, disse Sua, não mais minha, Santidade: ‘A distribuição justa dos frutos da terra e do trabalho humano é dever moral. Para os cristãos, um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres o que lhes pertence’. A fala agride a lógica por princípio. Se o tal ‘que’ pertencesse aos pobres, pobres não seriam. A fala repercute a noção essencialmente criminosa de que toda a propriedade é um roubo. Como esquecer que essa concepção de mundo de que fala o papa já governou quase a metade do mundo e produziu atraso, miséria e morte?”

UM POUCO DE NOVO TESTAMENTO

Agora vale a pena considerar como os primeiros séculos cristãos consideravam essa mesma questão. Comecemos pelo Evangelho de Mateus.

“Em verdade vos digo que dificilmente o rico entrará no Reino dos Céus. E vos digo ainda: é mais fácil o camelo entrar pelo buraco da agulha do que o rico entrar no Reino de Deus” — palavras de Jesus em Mateus 19,24.

Temos o Evangelho de Lucas:

“Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aquele que não tem, e quem tiver o que comer, faça o mesmo” — palavras de João Batista em Lucas 3,11.

Ainda em Lucas:

“Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação! Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome!” — é o que diz Jesus em Lucas 6,24-25)

Epístola de Tiago:

“Pois bem, agora vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que estão para vos sobrevir. Vossa riqueza apodreceu e as vossas vestes estão carcomidas pelas traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados e a ferrugem testemunhará contra vós e devorará vossas carnes. Entesourastes como que um fogo nos tempos do fim! Lembrai-vos de que o salário, do qual privastes os trabalhadores que ceifaram vossos campos, clama, e os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos Exércitos” (Tiago 5,1-4)

GIGANTES DA IGREJA

Acontece que essas críticas radicais à desigualdade social não estão presentes apenas nos textos do Novo Testamento. Um exemplo são as homilias de São João Crisóstomo (349-407 d.C.), arcebispo de Constantinopla. Ele diz, por exemplo: “O ladrão pobre nunca furta. Só retoma o que é seu”.

E ainda: “Lembrai-vos disso sem falta: não compartilhar nossa riqueza com os pobres é roubar dos pobres; com isso tiramos deles seu meio de vida; não possuímos uma riqueza que é nossa, mas a deles”.

Por falar em papas, que tal o radicalismo de São Gregório Magno (540-604)? Escreveu o antecessor de Francisco: “Quando damos aos indigentes algo de que necessitam, estamos lhes devolvendo o que lhes pertence e não estamos lhes dando o que é nosso. Estamos antes pagando uma dívida de justiça do que realizando uma obra de misericórdia”.

Só pra citar um exemplo mais próximo de nós, veja o que diz o Sermão do Bom Ladrão, do padre Antonio Vieira (1608-1697):

“Basta, senhor, porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós que roubais em uma armada sois imperador? Assim é. Roubar pouco é culpa, roubar muito é grandeza. O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas que levam de que eu trato, são os outros… ladrões de maior calibre e mais alta esfera”.

É difícil dizer, portanto, que a crítica à riqueza e ao capitalismo, bem como o imperativo moral de redistribuir a riqueza, seja alheia ao cristianismo. Talvez esteja mesmo em seu cerne.

Para quem quer saber o que os papas mais recentes disseram sobre essa questão, recomendo o excelente post no blog de um de meus leitores, Otávio Pinto.

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