Pirataria paleontológica
O fóssil da foto abaixo é indiscutivelmente espetacular: nada menos do que uma serpente primitiva com quatro patas, segundo os paleontólogos que o descreveram. Mas também é um exemplo de como parte importantíssima da riqueza paleontológica do Brasil tem se esvaído pelos nossos dedos. Como contei em reportagem recente nesta Folha, é virtualmente certo que a Tetrapodophis tenha deixado a chapada do Araripe, no Nordeste, de modo ilegal, coisa que já aconteceu com diversas espécies de dinossauros, pterossauros e outras criaturas extintas da região. Não se sabe como o bicho chegou ao museu alemão onde hoje está alojado. O chato dessa história, ao menos do ponto de vista de quem é brasileiro, é que os paleontólogos responsáveis por analisar e batizar o fóssil não enxergam nada de errado com esse fato.
Entrevistei dois desses paleontólogos e fiz a seguinte pergunta: vocês não acham que é o caso de repatriar o fóssil eventualmente? Crianças do Brasil não deveriam ter acesso a um pedaço tão importante da história evolutiva de sua terra num museu que elas pudessem visitar? Reproduzo abaixo as respostas, não porque concorde com elas, mas porque acho importante que o público do Brasil veja como funciona a cabeça de parte da comunidade científica internacional.
Primeiro, o que me disse Dave Martill, da Universidade de Portsmouth (Reino Unido):
“Fico feliz em dar minha opinião sobre as leis ridículas sobre fósseis do Brasil, que são ruins para a ciência e parecem xenófobas. Não sou contrário ao retorno do fóssil para o Brasil, já disse isso várias vezes. Pergunte ao museu se vocês podem recebê-lo de volta. Mas vocês também vendem todos os seus diamantes. Não acha que as crianças brasileiras têm direito de ver todas aquelas lindas gemas? Vamos arrancá-los do pescoço e dos dedos de todas as damas ricas do mundo e colocá-los nos seus museus. Por que vocês não impedem que as suas empresas mineradoras detonem os fósseis só para obter um pouco de gesso?
Suas regras fizeram com que seja ilegal para que qualquer pessoa que não seja um cientista colete fósseis, mas quando você escreve pedindo uma licença ninguém responde, e quando você visita a embaixada brasileira em Londres e eles dizem que vão te dar um retorno, não o fazem. As suas leis causam mais dano à paleontologia do que a protegem. Na Chapada do Araripe, fósseis fantásticos ficam a céu aberto, dissolvendo-se, porque as pessoas têm medo demais de coletá-los. Que desperdício triste. E algumas pessoas de baixa renda poderiam ganhar algum dinheiro para sobreviver vendendo esses fósseis (até para brasileiros, os quais hoje são mais ricos do que os ingleses).
Espero que você discuta a serpente e a ciência em seu artigo amanhã, e deixe a conversa sobre a legalidade do fóssil para outro artigo. Do contrário, mais uma vez, suas leis idiotas farão mal à ciência.”
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Agora, eis o que diz Nicholas Longrich, americano que trabalha na Universidade de Bath (Reino Unido).
“É uma questão complicada. Entendo o porquê de as pessoas desejarem que um fóssil tão bonito fique mais perto de casa. E eu ficaria feliz de ver isso acontecer, mas o fóssil não é meu, então a decisão não é minha.
Deixando a lei de lado, quem deveria ser moralmente dono de um fóssil? Não existia o Brasil há 115 milhões de anos, nem mesmo a América do Sul, apenas Gondwana, um vasto continente com desertos, florestas tropicais e dinossauros que iria se desfazer para gerar a América do Sul. Quem tem direito ao que existia lá? Os indígenas que caminharam da Sibéria até a América do Sul há 15 mil anos? Os europeus e africanos que vieram depois?
Meus ancestrais esquimós da ilha Kodiak, no Alasca, fizeram algumas máscaras lindas que foram compradas por um antropólogo francês no século 18, e hoje elas estão num museu na França. Algumas pessoas não gostam do fato de que as máscaras não estão em Kodiak. Mas eu estou feliz que pelo menos elas tenham sido preservadas. Se os franceses não tivessem comprado essas obras, eu nunca teria conseguido vê-las. De novo, entendo as pessoas que querem que os fósseis fiquem perto de casa, mas para mim a coisa mais importante é que eles tenham ido para um museu, onde podem ser estudados e apreciados.
Há muitos outros fósseis que são destruídos pela erosão ou pela mineração — não só no Brasil, mas também nos EUA, no Canadá, na China, no Marrocos. Ninguém se importa com isso, mas assim que outro país adquire um fóssil, todo mundo fica chateado. Será que ficamos mais felizes ao ver um fóssil ser destruído do que adquirido por outra nação? Isso me lembra de Cope e Marsh [paleontólogos americanos do século 19], que eram tão ciumentos e territoriais que dinamitavam seus sítios para impedir que outra pessoa escavasse neles. Será que os seres humanos são tão instintivamente territoriais que não é suficiente para nós lutar por fronteiras modernas, temos de lutar também por terras de 100 milhões de anos e reivindicar continentes quem nem existem mais?
Tendo dito isso, nós paleontólogos não somos muito melhores. Acho que a maioria dos paleontólogos acharia mais fácil perdoar quem roubou a esposa do que alguém que roubou um sítio ou uma descoberta.”
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