Um hominídeo muito louco
Faz quase 15 anos que eu acompanho as principais descobertas sobre evolução humana atuando como repórter de ciência, e devo dizer que os estudos publicados hoje sobre o Homo naledi, que talvez seja uma nova espécie do gênero biológico ao qual todos nós pertencemos, o Homo, bateram vários recordes de esquisitice.
Resolvi, portanto, tentar preparar um guia temático para os perplexos neste post, a pedido de meus colegas do site desta Folha. Se o gentil leitor tiver mais dúvidas, tenha a bondade de expressá-las nos comentários do post e farei o possível para elucidá-las.
QUE NEGÓCIO É ESSE DE CÉREBRO PEQUENO E CORPO “DE GENTE”?
Pois é — embora tenha sido classificado como membro do gênero Homo por Lee Berger e seus colegas da Universidade do Witwatersrand, na África do Sul, o novo hominídeo tinha um cérebro equivalente ao de um gorila dos dias de hoje. Ao mesmo tempo, suas mãos, pernas e pés parecem as dos neandertais e humanos modernos — se não fosse pelos dedos curvados, em geral vistos como adaptação para agarrar galhos de árvores, como ocorre com os chimpanzés.
Em resumo, a anatomia do bicho parece um mosaico, ou seja, mistura características ditas “primitivas” com outras “modernas”. Essa situação não é incomum na linhagem do homem, e parece mesmo que o cérebro foi mesmo um dos últimos órgãos a ganhar uma versão 2.0, mas a combinação exata de características do bicho sul-africano tem cara de ser inédita — daí a decisão de lhe dar um novo nome de espécie.
MAS É HOMO MESMO?
Se vocês me perdoam o uso da expressão, essa é uma das tretas mais cabulosas da pesquisa sobre evolução humana nos últimos tempos, conforme contei em reportagem recente nesta Folha.
Há pesquisadores influentes defendendo que o gênero Homo virou um saco de gatos, abrigando diversas espécies que, no fundo, têm pouca coisa em comum entre si e com os humanos modernos, que demos nosso nome ao grupo.
Vários desses bichos seriam primitivos demais para merecer a designação. Deveriam ser rebatizados, portanto, e talvez incluídos no grupo dos australopitecos, homens-macacos que foram comuns na África até uns 2 milhões de anos atrás. Aliás, falando em idade…
QUE IDADE TEM ESSE SUJEITO, AFINAL?
A resposta honesta no momento é “vai saber”, infelizmente. Berger e companhia não conseguiram datar os fósseis, embora eles representem mais de 15 indivíduos.
A datação está longe de ser só perfumaria aqui. Uma idade igual ou superior a 2 milhões de anos, digamos, daria mais peso à ideia de que a criatura pode ser um ancestral dos demais membros do gênero humano.
Por outro lado, nada impede que seja uma criatura bem mais recente, com algumas centenas de milhares de anos de idade, digamos. Nesse caso, estaríamos falando de um experimento evolutivo paralelo — fascinante, sem dúvida, mas com menos impacto direto na compreensão das origens da nossa espécie.
QUE REVISTA É ESSA?
A última perplexidade talvez seja tão relevante quanto as anteriores. A descoberta de uma nova espécie de hominídeo normalmente é uma notícia espetaculosa — com razão, porque os bichos são mais raros do que cabeça de bacalhau no registro fóssil. É quase certo que achar uma dessas criaturas catapulte os autores da pesquisa para as páginas das revistas científicas mais famosas e prestigiosas do mundo, a “Nature” e a “Science”. Só que Berger e companhia publicaram seu trabalho na relativamente obscura “eLife”, revista científica online de acesso livre.
Pode ser só paranoia da minha parte, mas não me surpreenderia se o artigo original tivesse sido rejeitado por essas grandes revistas primeiro — não por picaretagem, mas simplesmente pelas grandes lacunas a respeito da identidade do nosso amigo H. naledi. Estou tentando checar essa hipótese com os autores do estudo, ainda não recebi resposta deles, mas conto assim que souber.
COMPLEXIDADE, SEMPRE
O resumo da ópera é que ainda vamos precisar de um bocado de tempo para digerir o que exatamente ele significa para a história do gênero humano. De qualquer maneira, ela reforça os indícios de que nunca houve uma progressão evolutiva linear rumo a nós, H. sapiens, mas sim uma luxuriante proliferação de galhos da árvore genealógica do homem que conviveram, competiram e, muitas vezes, sumiram.