Sobre o “nascimento” de Deus
Vocês provavelmente já estão carecas de saber da chegada às bancas e livrarias do meu novo livro, “Deus: Como Ele Nasceu”, uma história da crença em deuses (e, em especial, no Deus único do monoteísmo ocidental) do Paleolítico até as origens do Islã (e com um breve epílogo sobre as implicações dessa trajetória para o mundo de hoje). Bem, já tem gente lendo o bichinho e me procurando via Facebook para fazer perguntas e comentários. Um desses leitores é o Marcos Cavalcanti, que me fez uma série de questionamentos. Com a autorização dele, coloco as perguntas e minhas respostas abaixo (as questões dele estão em negrito).
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Quando você diz abertamente em seus depoimentos públicos que é católico praticante, o quê isso realmente significa? Sendo católico, adota todos os pressupostos dogmáticos vaticinados pelo Vaticano? Ou apenas parte deles?
Não sei se você sabe, mas o conjunto de “pressupostos”, como você diz, nos quais um católico tem de acreditar para ser considerado católico é relativamente pequeno. É basicamente o que consta do Símbolo Niceno-Constantinopolitano que você pode acessar neste link e que foi composto por teólogos do fim do século 4º. As grandes ausências dele são os dogmas relativos a Maria, que foram formulados e decretados oficialmente mais tarde. É basicamente no símbolo e nos dogmas marianos que eu acredito.
É claro que você pode argumentar que, de uma perspectiva histórica, esses dogmas surgiram depois dos eventos nos quais se basearam, de forma gradual. Os cristãos do século 1º certamente não tinham na cabeça um conceito formalizado de Jesus como “Segunda Pessoa da Santíssima Trindade”. Aliás, a figura histórica de Jesus provavelmente não se via como igual a Deus Pai, como os próprios Evangelhos mostram.
Nesse ponto, creio que a pessoa de fé não pode questionar os dados históricos só por questionar. A questão é saber diferenciar entre fatos e interpretações. Para quem é cristão e/ou católico, a profunda identidade entre a pessoa de Jesus e a pessoa de Deus é a interpretação teológica correta dos fatos históricos que aconteceram na Palestina 2.000 anos atrás; vale dizer, é o significado daqueles acontecimentos. Quem não tem fé, claro, tem toda a liberdade para “ler” os fatos históricos como uma sequência de eventos sem um significado transcendente. Cada um é cada um.
Você tenta em seu novo livro lançar luz em relação ao nascimento de Deus, tomando tal termo “Deus” de maneira genérica, no título, mas isolando-o e restringindo-o ao deus de uma única nação no conteúdo? Você considera possível um verdadeiro e existente deus nascer para uma nação, ou melhor, elegê-la entre as outras existentes? (isso não é a demonstração cabal da impossibilidade do deus que você descreveu?)
O livro tem uma introdução que explica bem isso. Em nenhum momento eu digo que estou usando o termo “Deus” de maneira genérica — o Deus a que me refiro, depois de tratar da evolução da crença em divindades de maneira geral, é o Deus da tradição judaico-cristã-islâmica, simplesmente porque é, disparado, a figura divina com a maior importância histórica e o maior número de seguidores no mundo hoje (e ao longo dos últimos 1.400 anos também).
Sobre o que é possível ou impossível para Deus fazer, quem sou eu para dizer algo? Mas, pensando dentro da tradição teológica do judaísmo e do cristianismo, um dos pressupostos básicos é o de que Deus é inefável, ou seja, de que a lógica humana nunca é capaz de abarcar em sua totalidade a complexidade divina. (“You can’t second-guess ineffability”, como escreveram meus ídolos Terry Pratchett e Neil Gaiman. Ooops, eu disse ídolos? Perdão, Senhor!). Então, se parece absurdo para nós que Deus tenha escolhido o povo de Israel para um relacionamento especial, talvez não pareça absurdo para ele.
Mas o ponto central aqui é mais simples: o livro tem um ponto de vista metodologicamente agnóstico. Meu interesse é histórico, e não teológico. É óbvio que não dá para provar (ou desprovar!) que Deus escolheu Israel e que se encarnou como Jesus — o que dá para estudar e entender é como, ao longo da história, algumas pessoas acreditaram nessas coisas, e quais foram as consequências históricas disso.
Por que você não pintou melhor o retrato psicológico do deus a partir das tintas de sangue do próprio Antigo Testamento? (Ah, isso seria impossível, quando se pensa deus como sumo bem, não é?)
Creio ter mencionado o aspecto colérico e mesmo sanguinolento do Senhor Deus dos israelitas em algumas passagens (na pág. 155, por exemplo), mas a questão, ao menos do meu ponto de vista, é que essa cólera, embora seja importante, não dá conta do retrato completo de Iahweh. Tem muito sangue derramado no Antigo Testamento, sem dúvida, mas também tem muita ternura e compaixão. Qual é o Deus “verdadeiro”, aquele que extermina a humanidade pecadora no Dilúvio ou o Deus que, em profetas como Oseias, efetivamente diz o seguinte: eu amo tanto Israel que aceito até ser corno — marido traído — por amor a ele? Ou o que se compara a uma mãe e chama os israelitas de “bichinho Jacó, coisinha Judá”? Qualquer retrato unilateral falseia o quadro completo.
Mas, de novo, o que Deus — como personagem com psicologia própria — quer destruir ou quer amar é um tema para análise literária ou teológica, e não para a história, a qual é o verdadeiro foco do livro.
Fica evidente no seu livro que o deus que você descreve não passa de uma invenção humana decorrente de uma outra mais tosca e aí seguiríamos até a mais tosca das invenções de deus, no tempo, e você sabe muito bem aonde isso vai dar (naqueles potinhos, também toscos, onde enterraram os primeiros cadáveres e no medo da morte, que você não aborda como sendo, na verdade, a verdadeira certidão de nascimento de todos os deuses). Ou o que afirmei agora é uma impropriedade?
Sim, é uma impropriedade. Para começar, os primeiros cadáveres não eram enterrados em potinhos porque a cerâmica foi inventada dezenas de milhares de anos depois dos primeiros sepultamentos humanos… Mas beleza, fora esse detalhe técnico, entendi aonde você quer chegar. Ocorre que essa correlação entre medo da morte e crença em Deus ou deuses é uma coisa relativamente “moderna”, muito ligada ao monoteísmo cristão plenamente desenvolvido.
Talvez você fique chocado com a informação, mas muitas religiões primitivas — inclusive a religião israelita primitiva! — NÃO ESTAVAM NEM AÍ PARA A VIDA APÓS A MORTE. Na Bíblia hebraica ninguém “vai para o céu” — nem entre os gregos, nem entre os povos mesopotâmicos etc. Todo mundo ia parar numa única, vaga e indistinta região dos mortos onde não havia punição nem recompensa. As pessoas ficavam basicamente se coçando por toda a eternidade. Acreditar em Deus ou nos deuses era algo que as pessoas faziam para pedir felicidade e prosperidade NESTA VIDA. Então, essa tese do “medo da morte” é meio furada, na verdade.
Agora a pergunta mais importante, por que a ética de um povo precisa ter o aval de um deus para existir? Ou ainda, você acredita mesmo na cretinice da resposta: se deus não existe, tudo é permitido?
Não, claro que não acredito nisso, como você mesmo teve ocasião de ver ao terminar de ler o livro (embora nos primeiros capítulos eu também tenha tratado desse tema). É perfeitamente possível ser bom e ético sem crer em Deus. A Escandinávia moderna é uma das melhores regiões para se viver no mundo hoje, e tem uma maioria esmagadora de ateus em sua população.
Uma coisa da qual desconfio, mas não posso provar, é que é mais difícil ser heroicamente bom — dar a vida por outras pessoas, em especial as que não têm parentesco com você — sem acreditar em Deus. Da mesma maneira, talvez seja mais fácil cometer atrocidades terríveis quando se usa Deus como justificativa. São coisas complicadas de estudar quantitativamente, imagino.
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Conheça meu novo livro — “Deus: Como Ele Nasceu”, uma história da crença em Deus das cavernas ao Islã. Disponível nos sites da Livraria Cultura e da Saraiva
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