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Demorou mas chegou rápido, como dizia o garçom de um finado restaurante convenientemente localizado na porta dos fundos da Folha. Meu novo livro, “Deus: Como Ele Nasceu”, já está nas bancas faz um tempinho, mas o lançamento oficial vai acontecer agora, dia 20/10, uma aprazível terça-feira, às 19h, na Fnac da Avenida Paulista, em São Paulo.
Se você ainda está em dúvida sobre ir ao lançamento (caso esteja em São Paulo na referida data, claro) ou comprar o livro, apresento abaixo uma pequena degustação do primeiro capítulo, que na verdade conta como será o livro como um todo. Espero que goste e apareça!
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Acho que vale a pena oferecer ao nobre leitor uma rápida visita guiada do recinto antes de convidá-lo para o passeio completo. Eis, portanto, um resumo muito resumido do conteúdo desta obra.
A primeira, e talvez a mais importante, das premissas da nossa história é que, como todas as demais faculdades da mente humana, a nossa sensibilidade religiosa também foi moldada pela evolução – e em especial pelo mais importante mecanismo evolutivo, a seleção natural. Ou seja, só temos este cérebro típico de gente, e não outro, porque essa arquitetura específica ajudou nossos ancestrais a sobreviverem e, principalmente, a se reproduzirem. Ainda não está claro se a capacidade de acreditar em deuses ou outras entidades sobrenaturais foi, por si só, um desses elementos favorecidos diretamente pela seleção natural, ou se tal habilidade mental – até onde sabemos, única entre as criaturas da Terra – é apenas um subproduto de outros talentos naturais do Homo sapiens os quais, esses sim, são parte importante do nosso sucesso como espécie.
O que fica cada vez claro, no entanto, é que, diferentemente do que dizem certos defensores do ateísmo, ninguém “nasce” ateu – assim como ninguém cristão, budista ou adorador de Thor. Se o cérebro humano fosse um computador, ele seria do tipo que vem com vários programas “pré-instalados”, bastando clicar nos iconezinhos deles para que se autoinstalassem e começassem a funcionar – e a crença em seres sobrenaturais parece ser um desses programas. Acreditar em deuses parece ser um resultado completamente natural da maneira como o cérebro humano se desenvolve desde a primeira infância, e esse será o principal assunto dos nossos primeiros capítulos.
É lógico, no entanto, que existe um abismo considerável entre o tipo de divindade que acabou predominando no Ocidente – única, onipotente, onisciente e supremamente boa – e os deuses, espíritos da floresta e ancestrais venerados pelos pequenos grupos de caçadores-coletores aos quais os seres humanos pertenceram durante 99,9% de sua trajetória evolutiva. Depois de examinarmos o modelo “basicão” da crença em seres do Outro Mundo, será a hora de tentar entender como, em algumas culturas mundo afora, ao longo da (pré-)história, certos deuses começaram a assumir poderes e funções muito superiores às de um mero Curupira ou Saci-Pererê.
Temos boas razões para acreditar que essa metamorfose divina tem a ver com a eterna competição que existe entre diferentes sociedades humanas – uma tribo tentando conquistar ou até exterminar outra por exemplo – e também com os inevitáveis conflitos que aparecem em qualquer lugar em que muita gente viva junta disputando recursos, de parceiros sexuais a rotas de comércio. É muito plausível que a crença em deuses poderosos que, além disso, importavam-se com a prática do certo e do errado tenha aumentado a coesão de certas sociedades humanas, levando-as a triunfar no confronto com grupos que não eram adoradores desse tipo de entidade sobrenatural.
Ao longo desse processo, os grupos vitoriosos não só se tornavam mais numerosos e poderosos (aumentando sua própria população e/ou absorvendo a população dos derrotados) como também favoreciam a “reprodução” de seus deuses preferidos: agora, em vez de 10 mil adoradores, tais deidades tinham 100 mil devotos (por exemplo). Coincidência ou não, hoje há muito mais adoradores do Deus único judaico-cristão-islâmico mundo afora – ou seja, gente que venera um ser cuja principal preocupação é, segundo os teólogos dessas religiões, julgar o coração dos seres humanos e “dar a cada um segundo suas obras” – do que gente que acredita em espíritos da floresta.
A análise do papel social dos chamados Deuses Grandes (ou seja, os deuses superpoderosos e preocupados com a moralidade) encerrará a parte “genérica” do livro, já que esse tipo de divindade não é exclusivo do monoteísmo ocidental. Povos ditos “pagãos” (politeístas, ou seja, adoradores de muitos deuses) também acreditavam que suas deidades cumpriam a tarefa de atuar como guardiões supremos do bem, e há tradições religiosas fora do Ocidente, como o hinduísmo, o zoroastrismo e o sikhismo, que também são monoteístas ou frequentemente parecem se aproximar muito do monoteísmo. Mas é inegável que a tradição mais influente da adoração de um único deus, adotada por mais da metade da população do mundo atual, tem suas raízes no pequeno território hoje ocupado por Israel, pela Palestina e pela Jordânia, e são essas raízes que vamos investigar detalhadamente nos capítulos centrais e finais do livro.
Isso significa, para começo de conversa, uma releitura crítica dos textos hebraicos que os cristãos chamam de Antigo Testamento e os judeus chamam de Tanakh (é uma sigla; não se preocupe que eu vou explicar), comparando os dados presentes nos livros bíblicos com o que a arqueologia e os textos de outros povos do Oriente Médio nos contam. A história que emerge dessa comparação é complicada e às vezes ainda misteriosa, mas dá para resumi-la, por enquanto, da seguinte maneira: a fé no Senhor Deus bíblico muito provavelmente não nasceu pronta no monte Sinai.
Isso porque os antigos israelitas, seguidores do deus Iahweh (cujo nome às vezes é aportuguesado como Javé), originalmente tinham uma cultura religiosa muito semelhante, ainda que não idêntica, à dos demais povos do Oriente Médio durante a Idade do Ferro. (Esqueça esse papo de que a Bíblia foi escrita por “pastores ignorantes da Idade do Bronze”, aliás. Ela é um produto do fim da Idade do Ferro, vários séculos depois que o bronze deixou de ser o metal mais importante do mundo antigo, e provavelmente nasceu da pena de escribas bastante sofisticados culturalmente.) É quase certo que o antigo povo de Israel, ancestral dos atuais judeus, originalmente considerava Iahweh como, no máximo, o líder de um panteão (“família” de deuses) que talvez incluísse até uma esposa do Senhor Deus. Foram necessários séculos para que um subgrupo de israelitas – uma turma de reformadores religiosos radicais, possivelmente tão subversivos, em sua época, quanto o protestante Lutero foi para a Igreja Católica no século 16 – passasse a defender a adoração exclusiva de Iahweh como a única opção aceitável. No fim das contas, essa visão se intensificou de tal forma que o “bloco do Javé sozinho” (se é que você me permite a analogia carnavalesca) deu o passo seguinte lógico e proclamou: não só os israelitas não deveriam adorar a outros deuses (que não Iahweh) como essas demais divindades simplesmente não existiam. O Senhor era o único deus real, proclamavam eles.
Curiosamente, até onde sabemos, esse primeiro desabrochar do verdadeiro monoteísmo na história do planeta aconteceu justamente quando os israelitas tinham chegado ao que parecia ser o ponto mais desastroso de sua curta história: seus reinos tinham sido conquistados por estrangeiros, sua elite tinha sido exilada na longínqua Mesopotâmia (o atual Iraque), o Templo de Iahweh em Jerusalém fora destruído, a dinastia fundada pelo rei David perdera seu trono. O “povo de Deus” não tinha mais qualquer resquício de poder, mas o Senhor estava mais poderoso do que nunca na teologia criada por eles, controlando tanto a política internacional quanto o Cosmos. No fim das contas, os israelitas receberam permissão para reconstruir o Templo e a vida religiosa nacional, o que pareceria confirmar que o mesmo Iahweh que os havia punido por não adorá-lo corretamente decidira perdoá-los.
Por séculos, os descendentes dos exilados que voltaram para Jerusalém – os quais lentamente passariam a ser mais conhecidos como judeus, por causa da tribo israelita que predominava entre eles, a de Judá – levaram uma existência mais ou menos aceitável em sua terra e em outros cantos do mundo antigo, enquanto império atrás de império exercia sua hegemonia sobre Jerusalém e arredores. Foi só cerca de um século e meio antes do nascimento de Jesus que, confrontados com um novo tipo de dominação estrangeira, que ameaçava suprimir a crença em Iahweh e as práticas tradicionais de sua religião, vários grupos judaicos desenvolveram intensas expectativas messiânicas, aguardando a restauração do reinado dos descendentes de David e, em alguns casos, uma transformação total dos céus e da terra por meio da intervenção definitiva do Senhor Deus na história humana.
Foi no olho desse furacão que Jesus entrou em cena. Sim, ele quase certamente foi um personagem histórico de carne e osso, e não um mito, como algumas vozes barulhentas e desinformadas às vezes defendem hoje. Vamos tentar entender o que é informação histórica e o que é elaboração teológica nos relatos sobre o Nazareno e veremos como a crença na ressurreição dele acabou revolucionando o conceito tradicional do Deus único israelita. Existem pistas intrigantes de que, poucas décadas após sua morte, Jesus de Nazaré passou a ser enxergado por alguns grupos espalhados pelo Mediterrâneo como um ser dotado de poder e dignidade equivalentes às de Iahweh, a quem se devia adoração – uma das mais importantes “mutações” na carreira milenar do Senhor Deus. Com o passar dos séculos, a exaltação teológica de Jesus se intensificou cada vez mais, até culminar, nos séculos 4º e 5º após seu nascimento, com a definição de que ele era um dos aspectos do próprio Iahweh, sem deixar de lado seu lado humano – “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, como católicos, ortodoxos e protestantes ainda afirmam. De quebra, surgiu a definição cristã tradicional de Deus: uma única divindade em Três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo.
A última fase da saga do nascimento de Deus acontece na Arábia e é, em certo sentido, uma tentativa de retomar a divindade solitária e soberana dos israelitas. Trata-se de Alá, o Deus revelado a Maomé no século 7º d.C., que apresenta muito da mesma mistura de ferocidade e compaixão presente no Iahweh bíblico. De fato, se não há como provar que Maomé recebia mesmo mensagens do Deus de Abraão, boa parte de sua mensagem retoma os temas essenciais dos profetas do Antigo Testamento, como a justiça social. Numa época como a nossa, em que o Islã acabou virando sinônimo de terrorismo e opressão para muita gente, é urgente entender que a mensagem do Profeta não pode ser reduzida a esse estereótipo.
Eis aí como será o livro, minha gente. Eu avisei que a coisa era ambiciosa, não avisei?
Uma última e importante palavrinha sobre o título do livro antes de entrarmos de cabeça nos nossos temas: admito que Como Deus Nasceu tem um elemento de provocação, mas não é minha intenção dizer que Deus foi simplesmente inventado pelo homem – ao menos não como resumo do que acredito ser verdade sobre o Senhor (como o chamam tradicionalmente judeus e cristãos). Dizer que Deus “nasceu”, e que a gente pode contar as etapas desse parto, equivale simplesmente a reconhecer um fato que até as grandes tradições religiosas monoteístas admitem em seus textos sagrados: a crença nele pregada pelas fés atuais não existe desde o princípio do mundo, mas precisou ser formulada de maneira paulatina.
As grandes religiões monoteístas atribuem esse processo a uma série de “eventos revelatórios”, momentos nos quais Deus quis se dar a conhecer à humanidade, revelando-se – literalmente, retirando o véu de mistério que até então o encobria. Esses eventos teriam começado com Abraão (se você for judeu ou cristão, digamos) e terminado com Maomé (caso você seja muçulmano), mas eles estão entrelaçados com as idas e vindas da história humana. O que estou propondo por aqui, do meu jeito metodologicamente agnóstico, não é tão diferente – ainda que, em muitos casos, seja preciso reinterpretar as narrativas sacras originais e entender que é comum elas terem fundamentos míticos e teológicos, e não históricos. No fim das contas, acreditar ou não continua sendo, como sempre, questão de fé.
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Conheça meu novo livro — “Deus: Como Ele Nasceu”, uma história da crença em Deus das cavernas ao Islã. Disponível na Livraria da Folha em versão eletrônica e em versão papel nos sites da Livraria Cultura e da Saraiva
Confira meus outros livros de divulgação científica: “Além de Darwin” (ebook por apenas R$ 2!) e “Os 11 Maiores Mistérios do Universo” (em ebook aqui e aqui ou em papel aqui)
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