Relatos, câncer e esperança
Junto com vários outros jornalistas de ciência país afora, tive de entrar de cabeça na polêmica a respeito da fosfoetanolamina, molécula estudada por pesquisadores da USP de São Carlos (minha cidade natal e onde moro atualmente, aliás) que andou sendo distribuída a pacientes com câncer ao longo das últimas décadas, com supostos efeitos altamente positivos. (Sim, você não leu errado: “últimas décadas” mesmo – a distribuição acontece desde os anos 1990.) Se quiser ler as reportagens que escrevi sobre o tema nos últimos dias, pode dar uma olhada aqui e aqui. Minha tarefa neste post é mais básica, aparentemente mais desalmada, mas também necessária, creio eu: a ideia é explicar por que os relatos positivos dos doentes não servem para nada, ou ao menos servem para pouquíssima coisa.
Não me entenda mal: desejo toda a força do mundo para as pessoas que têm câncer e estão lendo isto aqui. Meu avô materno morreu antes do tempo por causa de um tumor na boca e na faringe que depois se espalhou pelo resto do organismo. A questão, porém, é que o corpo humano é um troço ridiculamente complexo e, se a gente não levar em conta todas as variáveis, acaba simplesmente se enganando.
Muitos pacientes dizem ter tomado a “fosfo” (como é chamada) e melhorado ou até se curado. OK, que ótimo para eles. As questões que esses relatos positivos não respondem, porém, são:
1)Do total de pacientes que consumiu a fosfoetanolamina ao longo de todos esses anos (devem ter sido milhares), quantos se curaram e quantos morreram devido ao câncer?
2)Em ambos os grupos que citei acima, quantos consumiram a molécula de forma combinada com tratamentos convencionais (cirurgia, radioterapia e quimioterapia) e quantos só usaram a “fosfo”?
3)Qual a idade, o estilo de vida, o peso, a alimentação e até o background genético e étnico de quem diz ter se curado e de quem acabou piorando ou morrendo?
4)Quais eram os tipos de tumores que acometiam ambos os grupos de pacientes, tanto em relação ao tecido atacado (fígado, ossos, pele, pulmão etc.) quanto ao nível de agressividade do câncer e de sua capacidade de migrar de uma parte do organismo para outra?
Veja que essas são apenas algumas perguntas possíveis de uma lista imensa de indagações que certamente viria à cabeça de qualquer oncologista experiente que tentasse entender o mecanismo de ação e a eficácia da fosfoetanolamina. Isso porque, como os médicos sabem há muitos e muitos anos, duas coisas são possíveis em qualquer doença: efeito placebo e remissão espontânea.
O segundo termo é mais rápido de explicar: por motivos ignorados (a capacidade de contra-ataque do próprio organismo, quiçá), a doença estaciona ou regride. Isso pode muito bem ter a ver com a nossa questão 4: há tumores naturalmente pouco agressivos por aí. Hoje em dia há quem discuta se vale a pena usar a artilharia pesada das cirurgias e da quimioterapia em certos tumores de tireoide, próstata e até mama, por exemplo, considerando que a progressão deles, dependendo do caso, pode ser tão lenta que pode não haver grande risco ao paciente – e custos consideráveis se o tratamento agressivo for utilizado (impotência no caso dos tumores de próstata, digamos).
Já o efeito placebo é simplesmente o resultado de aparente ou real melhora que surge quando o paciente acredita no remédio com todas as suas forças – mesmo quando o remédio é um placebo, ou seja, é inócuo. Isso acontece o tempo todo, em maior ou menor grau, em praticamente qualquer doença – é por isso que, quando um novo medicamento é testado, em geral há um grupo de pacientes que recebe placebo, justamente para comparar o desempenho do remédio “real” com o “falso”.
Repare que nada disso é frescura ou perfumaria – pelo contrário, sem controles rigorosos desse tipo, a gente nunca vai saber se a “fosfo” funciona mesmo, se é inócua ou, pior ainda, se faz mais mal do que bem. E são precisamente essas coisas que os pesquisadores até hoje não fizeram.
Em tempo: relato por relato, eu também tenho o meu – e ele não é nada legal. Uma amiga minha morreu há poucos meses, mesmo tomando fosfoetanolamina. OK, o câncer dela era avançado e tinha se espalhado por diversos órgãos. Se a molécula não a ajudou, pode até ajudar outros – mas a gente nunca vai saber sem um teste adequado e cuidadosamente cético das possibilidades.
É assim que se faz ciência. Nas palavras de Richard Feynman, físico e ganhador do Nobel: “A primeira regra é que você não pode se enganar. E você mesmo é sempre a pessoa mais fácil de enganar”.
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