As origens de Moisés

Reinaldo José Lopes
Moisés prestes a quebrar os Dez Mandamentos em imagem de Rembrandt (Crédito: Reprodução)
Moisés prestes a quebrar os Dez Mandamentos em imagem de Rembrandt (Crédito: Reprodução)

O sucesso da novela “Os Dez Mandamentos” tem despertado um tremendo interesse nas narrativas bíblicas que inspiraram o folhetim da Record e, claro, também nos aspectos históricos e arqueológicos da história de Moisés. Por isso, nos próximos dias o blog vai ser palco de uma série épica de posts sobre o maior dos profetas e as origens do povo de Israel.

Para começar, é com prazer que vos trago, insignes leitores, uma entrevista com o teólogo e padre Leonardo Agostini Fernandes, professor de Sagradas Escrituras da PUC do Rio e doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Qual a origem do nome de Moisés? Por que ele foi proibido de entrar na Terra Prometida? Como surgiu a história do Bezerro de Ouro? O pesquisador fala desses temas e de alguns mais logo abaixo.

A propósito, o pessoal da revista “Superinteressante” me convidou para escrever a reportagem de capa deste mês, justamente sobre esse tema, que já está nas bancas!

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1) Primeiro, uma questão especulativa. Um dos indícios de que a figura histórica de Moisés de fato estava ligada de alguma forma ao Egito é o próprio nome dele, cuja forma parece ser a terminação dos nomes egípcios que homenageiam certos deuses, como Ramsés ou Tutmósis, correto? Fico me perguntando se o nome original de Moisés não teria um elemento derivado do nome de alguns deus pagão, como Ra- (digamos), que depois foi eliminado por causa do papel de Moisés como líder da veneração ao Deus único, Iahweh. Esse seria um cenário plausível, na sua opinião?

O nome Moisés, pela forma como se encontra no texto hebraico (mōšēh), é um particípio masculino ativo singular absoluto (“aquele que extrai” ou “aquele que retira”), e, pela notícia contida em Ex 2,10, significa “retirado das águas”. Uma elaboração estranha, pois se esperaria um particípio passivo (“aquele que foi extraído” ou “aquele que foi retirado”). Tal nome poderia advir do verbo māšah, que significa “ele extraiu” ou “ele retirou”, uma ação que corresponderia ao afirmado pela filha do Faraó que o chama de Moisés, de acordo com a sua ação: “porque dentre as águas eu o retirei” (mešîtihû).

Faraó Ramsés 2º, muitas vezes visto como o faraó do Êxodo, embora a identificação seja duvidosa. (Crédito: Reprodução)
Faraó Ramsés 2º, muitas vezes visto como o faraó do Êxodo, embora a identificação seja duvidosa. (Crédito: Reprodução)

Ao lado destas considerações, porém, Moisés é reconhecido como um hebreu, pois a própria filha de Faraó, ao vê-lo, exclama: “este é um menino dos hebreus” (Ex 2,6), dado que significa, mais do que etnia, uma constatação: “um menino dos que atravessaram” – do verbo hebraico ‘ābar; ela reconheceu que era uma criança dos que atravessaram o deserto (de Canaã a Gesen) e se tornaram fecundos no Egito (cf. Ex 1,7; Sl 105,24; At 13,17).

De fato, é plausível admitir a origem egípcia deste nome, talvez oriundo de ms, “criança”, ou da raiz mss, “nascer”, ou msy, “gerar”, ou na forma mosu/mesu, que significa “filho” e mosis que significa “filho de”. No caso de Moisés, falta o nome da divindade que o teria gerado ou do qual ele seria considerado filho. Vários nomes egípcios são formados a partir da raiz mss: Tuth-mosis (“filho/gerado de Tuth”); Ath-mosis (“filho/gerado de Ath”), Ptah-mose (“filho/gerado de Ptah”), Ra-msés (“filho/gerado de Ra”).

A ausência do nome da divindade, no caso de Moisés, parece-me proposital do ponto de vista teológico, para revelar que o seu verdadeiro nascimento acontecerá no momento da experiência que o despoja de suas capacidades e fraquezas, quando é chamado pelo nome por Deus em virtude da missão libertadora dos filhos de Israel do Egito (cf. Ex 3,1–4,18). Desse momento em diante, Moisés tem por referência o Deus do seu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.

2) Qual a melhor maneira de explicar, tanto do ponto de vista literário quanto do teológico, o porquê de Deus não ter permitido que Moisés em pessoa entrasse na terra de Canaã e morresse fora dela? Sei da justificativa dada no livro de Números, na qual Deus afirma que Moisés e seu irmão Aarão não seguiram suas instruções à risca, mas a situação parece tão vaga que a punição divina dada a ele soa arbitrária. Existe uma maneira de interpretar com mais clareza o significado dessa passagem?

Concordo, plenamente, com a questão devidamente colocada. Um olhar atento para a Torá reconhece que Moisés é a figura humana mais importante: nasce em Ex 2 e morre em Dt 34. Literariamente, Moisés ocupa quatro quintos da Torá. Do ponto de vista de Nm 20,1-13 (também citado em Dt 1,37-38; 3,23-28; 4,21-22; 32,51), Moisés foi proibido por Deus de entrar na terra de Canaã por não ter santificado o nome de Deus diante do povo murmurante pela sede.

Esta explicação é de cunho sacerdotal e não convence muito. Parece, simplesmente, que era necessário imputar uma culpa em Moisés que justificasse o “castigo” de Deus. Para mim, porém, Moisés não recebeu o direito de entrar na terra de Canaã pelo simples fato de não fazer parte da sua missão. Se levarmos em conta que José, filho de Jacó, foi o responsável por introduzir a sua família no Egito, seria lógico que, de algum modo, José, através de um de seus descendentes, fizesse o povo regressar para a terra.

Capa da revista Superinteressante deste mês, com reportagem escrita por este escriba que vos fala (Crédito: Reprodução)
Capa da revista Superinteressante deste mês, com reportagem escrita por este escriba que vos fala (Crédito: Reprodução)

E isso de fato é o que acontece, pois Josué, o ajudante de Moisés, é filho de Nun e da tribo de Efraim (cf. Nm 13,8.16; 14,38), o filho abençoado por Jacó (cf. Gn 48,13-14). É Josué, uma espécie de José redivivo, quem recebe a missão de fazer entrar os filhos de Israel na terra de Canaã (cf. Dt 1,38). Isso ainda pode ser confirmado por outro detalhe: os ossos de José, segundo a sua profecia (cf. Gn 50,24-25), foram retirados do Egito por Moisés (cf. Ex 13,19), acompanharam o povo durante toda a travessia do deserto e foram por depositados Josué num túmulo em Siquém (cf. Js 24,32). Com isso, a profecia de José não apenas se cumpriu, mas ele, através do seu descendente, reconduziu o povo de volta para a terra de Canaã.

3) Para o senhor, qual a origem mais provável para o episódio do Bezerro de Ouro? Muitos acreditam que se trata de uma reelaboração da história dos bezerros de ouro do rei israelita Jeroboão I, que foi recontada no contexto do Êxodo. 

A questão é muito complexa! No Antigo Oriente Próximo, o bezerro era considerado um animal sagrado, símbolo da força. Existem vários pontos de contato entre o episódio narrado em Ex 32,1-6, no qual se atribui a Aarão a confecção do bezerro de metal fundido, em 1Rs 12,26-30, no qual se atribui a Jeroboão I a confecção de bois bezerros de ouro, respectivamente, um para o santuário de Dan e outro para o santuário de Betel, e em 2Rs 23,15, no qual se afirma que Josias, rei de Judá e descendente de David, destruiu o altar que estava em Betel e, consequentemente, o bezerro de ouro que lá era adorado.

A retroprojeção é admissível, considerando que o Pentateuco, funcionando como uma espécie de constituição do antigo Israel, serve para determinar o que deve ser feito e o que deve ser evitado. Ex 32,1-6 narra o episódio do bezerro de ouro para que sirva de admoestação para o povo de Judá, afim de não incorrer no mesmo pecado provocado por Jeroboão I.

Como a edição final do livro do Êxodo é pós-exílica e foi feita em Judá, a retroprojeção serviu para evidenciar os efeitos causados pela idolatria: a queda de Samaria em 722 a.C. e a queda de Jerusalém em 587 a.C. No fundo, a mensagem é a mesma: a destruição ocorreu por causa da infidelidade do povo: adorar como Deus a imagem de um animal que come feno. Dt 9,7-21, que lembra o episódio narrado em Ex 32,1-6, liga-se à reforma de Josias. Nesse sentido, parece-me que o contexto vital dos episódios é o reinado de Josias e suas reformas político-religiosas, aproveitando o enfraquecimento do poderio assírio e procurando retomar os antigos territórios perdidos quer pelo Israel do norte, quer por seu bisavô, o rei Ezequias.

4) Muitos pesquisadores propõem que o Deuteronômio, bem como boa parte do Pentateuco, receberam grande parte de sua forma atual durante o reinado reformista de Josias. No caso da lei mosaica, um dos argumentos em favor dessa ideia é a semelhança com os tratados de vassalagem assírios, usados pelos reis da Assíria para garantir a fidelidade de seus súditos, textos que são contemporâneos de Josias. Como o sr. vê essa hipótese?

Existe uma ligação entre a presente questão e a anterior, na qual eu já acenava para a reforma de Josias. Esta reforma encontra-se motivada pela descoberta de um “livro da lei” durante as obras de restauração do templo, que, segundo a narrativa bíblica, desencadeou uma ampla reforma que se estendeu, inclusive, ao antigo reino do norte (cf. 2Rs 22,1–23,20).

Nas pesquisas bíblico-exegéticas sobre a formação do Deuteronômio, e do Pentateuco como um todo, se reconhece a ligação com os tratados de vassalagem tanto dos assírios, como dos hititas; estes são bem mais antigos que aqueles. Nestes tratados, a estrutura básica era composta de um prólogo histórico, uma declaração fundamental, as determinações detalhadas, as testemunhas evocadas e terminava com bênçãos e maldições.

A primeira possível redação do Deuteronômio (5,1–28,68*), provavelmente da época josiânica, possui essa estrutura, razão pela qual se faz alusão aos tratados hititas. Contudo, visto que o antigo Israel não é uma realidade isolada, mas profundamente inserida no contexto do Antigo Oriente Próximo, o reconhecimento dessa estrutura não implica em uma estrita dependência literária, mas principalmente ideológica.

No caso particular do livro do Deuteronômio, na década de sessenta do século passado, foi descoberto o tratado de vassalagem que Assaradon, rei da Assíria, impôs aos principais súditos para garantir a sucessão do seu filho Senaquerib ao trono. Trata-se de uma estratégia política. Assaradon quis evitar as desordens que geralmente acompanham a transição ao trono. Sabe-se que Manassés (687-642 a.C.), filho de Ezequias, submeteu-se em tudo aos assírios na época de Assurbanipal (668-627 a.C.).

Então, é plausível admitir que uma cópia desse tratado de vassalagem tenha chegado a Jerusalém nessa época e que a sua forma e conteúdo possam ter influenciado os autores do Deuteronômio (que eram ilustres e letrados da corte), razão pela qual, pela lógica dada ao livro, Moisés, antes de morrer e por ordem divina, busca evitar as desordens e garantir que a sucessão fique com Josué.

Este fundo primitivo, porém, tem mais a ver com as desordens que se seguiram à morte de Amon, filho de Manassés, assassinado por cortesãos, mas vingado pelo “povo da terra” que proclamou Josias como rei no lugar de Amon, evitando, assim, que as desordens se alastrassem e transformassem o trono de Judá num campo de batalha e de morte como ocorreu com o reino do norte até a sua destruição em 722 a.C.

O Deuteronômio faz uma releitura do tratado de vassalagem e possui elementos diferenciadores. No lugar de Assaradon, Deus é o verdadeiro soberano e Josué o seu escolhido para suceder Moisés. O que estava em jogo era a formação e a restauração da identidade nacional do antigo Israel que foram profundamente ameaçadas pelas constantes interrupções políticas, econômicas e religiosas causadas pelas sucessivas dominações estrangeiras.

Na base dessa restauração, o “ livro da lei de Moisés” (cf. Ne 8,14-15) tem o protagonismo e a força de persuasão para garantir que o povo continuasse fiel à aliança com o seu Deus. Esta fidelidade ocorre na fidelidade à Torá que, no fundo, passou a ser o verdadeiro critério capaz de garantir que a terra, dom de Deus, não fosse perdida pelo enfraquecimento político-religioso causado pelas desordens e lutas pelo poder. Só Deus é soberano e a fidelidade à Torá é que garante a legítima sucessão ao trono, como ocorreu com Josias.

5) Apesar dos paralelos numerosos entre as leis mosaicas e as dos demais povos do Antigo Oriente Próximo, é possível afirmar que há algo de original nos Dez Mandamentos e no conjunto da Torá? Trata-se de mera evolução ou há algo revolucionário no conteúdo deles?

Nos grandes impérios supracitados, a promulgação de leis ficava sob a responsabilidade dos monarcas. Um dado particular das leis do antigo Israel reside no fato de que, ao contrário do que ocorria nos grandes impérios, a Torá une, estreitamente, direito civil e direito sagrado, e que a sua legislação foi promulgada pelo seu Deus através de Moisés, seu mediador.

Dessa forma, os vários aspectos da vida social do antigo Israel estão assinalados pela presença do seu Deus libertador. Desse modo, um delito social é um delito que ofende ao seu Deus. Neste sentido, o Decálogo, que possui duas tradições textuais (cf. Ex 20,1-18 e Dt 5,6-21), atina para o mesmo princípio: a legislação está ligada aos quarenta anos do deserto, isto é, ligada ao tempo e ao lugar normativos, enquanto educação do povo que se prepara para tomar posse da terra de Canaã. Assim, as leis do antigo Israel não foram promulgadas na terra de Canaã por um dos seus monarcas, mas pelo seu Deus libertador e condutor do povo pelo deserto, o local onde a vida, humanamente dizendo, é incapaz de existir.

Desse modo, o falimento da monarquia em Israel não fez desaparecer a sua legislação, pois, segundo a lógica da Torá, ela é mais antiga que a própria monarquia e remonta ao tempo e ao local da geração da identidade do povo liberto. Assim, retomando oportunamente a segunda questão, pode-se dizer que, no fundo, Moisés não entrou em Canaã como se esperava, isto é, como uma recompensa pelos bons serviços prestados a Deus, mas, de fato, ele entrou vivo e imortalizado na Torá, que traz a sua marca como mediador, razão pela qual passou a ser conhecida como a “lei de Moisés”, o mediador que pertence ao deserto e não à terra prometida e que terminou a sua vida como o maior profeta que o antigo Israel já teve na sua história (cf. Dt 34,10).

Pode-se dizer que no Decálogo reside uma força que ultrapassa as fronteiras do tempo e do espaço, força capaz de vivificar o povo em qualquer circunstância que tente impedir o seu caminho existencial como povo eleito.

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