O careca, os moleques e as ursas
O Antigo Testamento está cheio de histórias capazes de chocar as pessoas de hoje, mas uma das campeãs provavelmente é a que envolve o profeta Eliseu, um bando de 42 moleques e duas ursas (as quais devoram os moleques, graças a uma maldição do profeta). Ocorre que a interpretação correta dessa passagem talvez seja muito mais complexa e simbólica do que a gente imagina, conforme pretendo contar neste post.

Vou deixar, antes de mais nada, que o narrador anônimo do Segundo Livro dos Reis conte o que teria acontecido (capítulo 2, versículos 23 a 25).
“De lá [Eliseu] subiu a Betel; ao subir pelo caminho, uns rapazinhos que saíram da cidade zombaram dele, dizendo: ‘Sobe, careca! Sobe, careca!’. Eliseu virou-se, olhou para eles e os amaldiçoou em nome de Iahweh. Então saíram do bosque duas ursas e despedaçaram quarenta e dois deles. Dali foi para o monte Carmelo e depois voltou para Samaria.”
Se interpretada literalmente, a passagem de fato é capaz de provocar arrepios. Quer dizer que a molecada tira um sarro leve do profeta — afinal, “careca” não é o pior xingamento que um israelita era capaz de proferir — e Eliseu invoca o poder de Deus para matar todos?
A interpretação dessa passagem aparentemente bizarra que apresento a seguir está num artigo do teólogo Cássio Murilo Dias da Silva, da PUC-RS. Você pode baixar a pesquisa original dele clicando aqui. O estudo foi publicado já faz algum tempo, mas as ideias são tão interessantes que me pareceu bacana divulgá-las de forma mais ampla.
Vamos por partes.
1)MAS CARECA QUER DIZER “CARECA” MESMO?
O uso do termo “careca” talvez seja mais significativo do que um mero insulto infantil. O termo usado em hebraico é “qereah”, nota Silva – derivado do verbo “qrh”, que significa “rapar a cabeça”. Ou seja, tudo indica que Eliseu não é careca porque sofre de calvície, mas sim porque cortou rente os cabelos, de forma total ou parcial.
Parece haver uma conexão intrigante entre a cena com Eliseu e outro momento da narrativa bíblica, no Primeiro Livro dos Reis (capítulo 20, versículos de 35 a 43), na qual outro profeta, cujo nome não é citado pelo narrador, enfaixa a cabeça e cobre os olhos para não ser reconhecido pelo rei israelita Acab. Em dado momento da história, esse profeta tira o pano que lhe cobria a cabeça, e com isso o rei percebe que se trata de um mensageiro de Deus. Muitos especialistas interpretam a cena como sinal de que os profetas, ao menos nessa época (por volta de 850 a.C.) tinham alguma espécie de tonsura no cabelo, mais ou menos como certos monges católicos costumavam ter (grupos recentes, como a Toca de Assis, ainda a adotam).
Se essa interpretação estiver correta, a “careca” de Eliseu nada mais seria do que um sinal de sua consagração a Deus. Ou seja, os moleques estariam zombando não da aparência dele, mas de sua devoção ao Senhor.
2)QUAL É A DESSAS URSAS?
Em vários textos do Antigo Testamento, animais ferozes que atacam os israelitas que não honram a aliança com Iahweh são usados como símbolos dos inimigos de Israel e, em última instância, da ira do próprio Deus, que usa os inimigos de seu povo como instrumento para manifestar seu poder.
O fato de elas aparecerem em par, porém, é meio esquisito. Igualmente esquisito é o fato de que apenas duas delas consigam devorar 42 moleques. Será que eles ficaram todos paralisados de medo ou fizeram fila para serem comidos por apenas duas feras? E por que exatamente 42? Será que Eliseu se deu ao trabalho de contar quantos meninos foram indo parar na goela das monstras antes de seguir seu caminho? Alguma coisa não bate – o que nos leva ao último e decisivo item.
3)A RESPOSTA É 42
Hora da matemática simbólica funcionar como pulo-do-gato da nossa narrativa. Quantos reis o povo de Israel teve enquanto permaneceu unido como um único Estado monárquico? Três (Saul, David e Salomão). Depois, os israelitas se dividiram no reino de Israel, no norte, e no reino de Judá, no sul. Quantos reis Israel teve? Dezenove. E Judá? Vinte.
Conte comigo: 3+19+20 = 42. Caramba.
Quem destruiu o reino de Israel? A toda-poderosa Assíria. E Judá? A igualmente poderosa Babilônia. DUAS URSAS!
CONCLUSÃO
Silva argumenta que a edição final dos livros dos Reis aconteceu depois do fim dos dois reinos, durante o exílio dos membros da elite de Judá na Babilônia. (Faz sentido porque a conclusão da obra cita a vida dos judeus no exílio mesopotâmico). Nesse caso, a história das ursas é um microcosmo da história desastrosa do povo de Israel até então: ao renegar a fé em Deus (ou seja, a “careca” de Eliseu) e se entregar a divindades pagãs, os 42 reis se comportaram como 42 moleques irresponsáveis e levaram sua nação à ruína nas mãos de duas “ursas”, ou potências estrangeiras.
O principal contra-argumento contra essa interpretação extremamente engenhosa é que há alguns reis “bons” no meio dessa conta – David, Ezequias e Josias, todos em Judá, por exemplo. Por outro lado, é possível dizer que, do ponto de vista do editor dos livros dos Reis, a monarquia como um todo foi um experimento fracassado que afastou Israel da aliança com Deus.
—————–
Conheça meu novo livro — “Deus: Como Ele Nasceu”, uma história da crença em Deus das cavernas ao Islã. Disponível na Livraria da Folha em versão eletrônica e em versão papel nos sites da Livraria Cultura e da Saraiva
Confira meus outros livros de divulgação científica: “Além de Darwin” (ebook por apenas R$ 2!) e “Os 11 Maiores Mistérios do Universo” (em ebook aqui e aqui ou em papel aqui)
Conheça e curta a página do blog Darwin e Deus no Facebook