O problema com o Islã
Diante de uma tragédia como a de Paris neste fim de semana, é inevitável que muita gente se pergunte: afinal, qual é o problema com o Islã? Por que correntes da segunda maior fé monoteísta do planeta acham legítimo praticar atos como os que chocaram o mundo nos últimos dias?
É claro que há psicopatas entre os membros de todas as religiões (e entre os sem religião também, obviamente); é claro ainda que há elementos políticos, culturais e econômicos, sem nenhuma relação direta com a religião muçulmana, que influenciaram os massacres em Paris (e pretendo falar deles em outros posts). Mas também é verdade que, no cenário atual, parece improvável que grupos extremistas de cristãos ou de judeus (para citar os outros monoteístas ou “Povos do Livro”, como os muçulmanos os chamam) consigam deflagrar uma guerra santa de proporções globais nos dias de hoje.
O que nos leva de volta à pergunta: haverá algo diferente no Islã que ajuda a criar essas condições? Talvez a resposta seja uma palavra em árabe: “ummah”.
“Ummah” é um termo que pode ser traduzido como “comunidade”, como na frase “ummat al mu’minin”, ou “comunidade dos fiéis” do Islã. A questão essencial aqui é que, ao longo da maior parte de sua história, o Islã nunca viu qualquer tipo de separação natural entre o mundo da política (e o da guerra), de um lado, e o da religião, do outro. A “nação” muçulmana (outra tradução possível para o termo “ummah”) era o conjunto dos fiéis, e vice-versa.
O SELO DO PROFETA
Isso, aliás, começou com Maomé. O profeta do século 7º d.C. iniciou seu movimento como um pregador que parecia não ter pretensões políticas imediatas, mas a hostilidade contra seu grupo inicial de muçulmanos na cidade santa de Meca o forçou a aceitar o convite de alguns moradores de Medina de se mudar para lá para atuar como uma espécie de juiz/prefeito/guia espiritual.
Ou seja, o chefe supremo e fundador do Islã quase imediatamente assumiu um papel político de relevo, que logo acabaria virando também um papel de líder militar. A “ummah” original era tudo isso junto: uma “Igreja”, um Estado e um exército atuando em uníssono — mesmo quando essa comunidade aceitava também a presença de cristãos e judeus em seu meio, como membros livres (mas economicamente subordinados, pagando uma taxa especial). Essa taxa, aliás, foi recriada pelo Estado Islâmico.
O sucesso da “ummah” ao longo de seus primeiros séculos de história foi estrondoso, em contraste com as seguidas derrotas dos povos muçulmanos diante das potências coloniais europeias a partir do século 19. De certa maneira, portanto, é esperado que os sujeitos que querem “recriar a pureza original” do Islã resolvam tentar remontar a absoluta identidade entre o Estado e a religião que eles enxergam na “ummah” original.
É possível que isso também ajude a explicar por que os povos muçulmanos do Oriente Médio não assimilaram a separação entre as duas coisas, que virou uma espécie de dogma secular dos países do Ocidente. Apesar dos séculos de supremacia do cristianismo por aqui, a religião cristã não surgiu como uma espécie de novo Estado imperial vitorioso — pelo contrário, em seus primeiros séculos, tratava-se de um movimento paralelo ao Estado. Quando imperadores romanos e reis germânicos passaram a se tornar cristãos, nunca houve uma identidade absoluta entre a estrutura política que eles governavam e a Igreja.
Reforçando de novo: é claro que esse é um fator entre outros. Se a situação fosse fácil de entender ou de resolver, não estaríamos enfrentando o atoleiro atual. E é claro que países muçulmanos podem criar instituições seculares que funcionem de forma decente — a Jordânia parece ser um exemplo disso. É injusto culpar o Islã simplesmente por existir, mas também é preciso lidar com a parcela complicada e violenta de sua herança, ao mesmo tempo em que reconhecemos os (muitos) lados positivos dela — o que vale, óbvio, para qualquer religião.
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