Colisão em Cajamarca

Reinaldo José Lopes

Pois é, resolvi enfiar minha mãozinha no vespeiro (ou na cumbuca, como queiram) do currículo nacional de ensino de história, como deve ter visto quem leu minha coluna de ontem na versão impressa desta Folha. Bom, “resolvi” é modo de dizer: o pessoal do jornal me pediu uma reportagem sobre o tema, que deve sair em breve, mas quis ir numa direção um pouco diferente da que vi nas entrevistas e falar de como tentar casar a história com as demais ciências, em especial as ciências naturais. E inevitavelmente cheguei a “Armas, Germes e Aço”, o clássico de 1997 escrito pelo biogeógrafo americano Jared Diamond, e a cena usada por ele como microcosmo do livro: a “colisão em Cajamarca” entre o imperador inca Atahualpa e seu exército de dezenas de milhares de indígenas, de um lado, e os 168 aventureiros espanhóis comandados por Francisco Pizarro, de outro.

Caso você não saiba, Pizarro ganhou a parada, de goleada, matando os homens de Atahualpa como se eles fossem coelhos assustados e capturando o imperador inca. (Mais tarde, chantageou o coitado até encher uma casa quase até o teto de ouro e prata e ainda assim o executou. Ninguém disse que era uma história bonita.) Diferentemente do que algumas pessoas disseram ao comentar a coluna original no site da Folha, nesse primeiro grande confronto a única ajuda de indígenas não incas que os espanhóis tiveram foi a de alguns intérpretes. O uso aterrorizante dos cavalos como máquinas de guerra foi o principal responsável pelo resultado aparentemente milagroso da batalha em favor dos europeus — o elemento surpresa, as armas e armaduras de aço e o efeito moral de alguns canhões e armas de fogo mais leves também ajudaram, assim como o excesso de autoconfiança de Atahualpa, que estava cercado de soldados e nobres incas desarmados (ele não achava que os espanhóis fossem uma ameaça).

ASSIMETRIA FUNDAMENTAL

Como expliquei rapidinho na coluna, e como gostaria de desenvolver um pouco mais neste espaço, o confronto entre europeus e indígenas costumava ser tão assimétrico (embora raramente tão assimétrico quanto na batalha de Cajamarca) em grande parte graças a um único fator: a relativa falta de mamíferos de grande porte “domesticáveis” nas Américas. Basta dizer que, na América do Sul, o maior mamífero que sobreviveu à extinção em massa do fim da Era do Gelo é a anta, com no máximo 300 kg (cavalos adultos pesam, em média, o dobro disso, e os maiores podem chegar a uma tonelada). Os nativos da América do Norte foram um pouco mais sortudos nesse sentido, com a presença de bichos como bisões ou alces, cujo tamanho empata com o dos bovinos da Eurásia ou até o excede.

No entanto, só a menor abundância de grandes mamíferos não explica tanta coisa assim. Por esse critério, afinal, a África, com suas zebras, seus búfalos e rinocerontes seria a Meca da domesticação animal, o que não aconteceu. Diamond invoca então o “princípio Anna Karenina”, derivado do famoso romance russo que diz que “todas as famílias felizes são iguais; cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira”.

O que isso tem a ver com grandes mamíferos? Significa que precisamos de uma constelação relativamente complexa de fatores para conseguir domesticar para valer uma espécie, gentil leitor. É preciso um nível mínimo de docilidade, para começar (zebras, lembra Diamond, são MUITO mais dadas a morder seus donos do que cavalos), tolerância à alta densidade populacional e ao confinamento (cervos, veados e seus parentes simplesmente não toleram ser enfiados num cercadinho estreito por muito tempo), capacidade de se reproduzir facilmente em cativeiro (os pandas dão uma dor de cabeça dos diabos com essa história), e por aí vai.

Tudo isso explica o fato de que, nas Américas, tenhamos apenas três tipos nativos (de tamanho modesto) de mamíferos domesticados: cães, porquinhos-da-índia e dois camelídeos, as lhamas e as alpacas.

E daí? Daí que, fora o uso bélico do cavalo e os inúmeros recursos trazidos por bois, vacas, cabras, porcos e ovelhas, os nativos americanos nunca desenvolveram as doenças infecciosas bravas que caracterizaram a Eurásia por milhares de anos — doenças que nasceram, quase sempre, como zoonoses que viraram moléstias humanas graças ao contato íntimo entre europeus (e asiáticos) e sua bicharada. (Lembre-se que o camponês médio da Europa, caso tivesse a sorte de criar porquinhos, provavelmente dormia com eles dentro de casa no inverno no século 16.)

Essa é a importantíssima parte “germes” da equação. Talvez a crucial — muito mais indígenas (e aborígines australianos, e polinésios) morreram de doenças ocidentais do que na base da pancadaria. A parte “armas e aço”, ou seja, desenvolvimento tecnológico, é mais complicada. Mas parte da resposta, sugerida por Diamond, provavelmente tem a ver com o fato de que a Eurásia se estende de leste para oeste, enquanto o eixo das Américas vai de norte a sul.

Isso significa que boa parte da Europa e do Oriente Médio (no mínimo, a bacia do Mediterrâneo e regiões vizinhas) tem, grosso modo, climas parecidos que permitiram a difusão da agricultura, da pecuária e de uma série de tecnologias. Já o sujeito que tentasse passar das cidades-Estado maias para os Andes e seus impérios teria de atravessar quilômetros e mais quilômetros de floresta equatorial (e oceano). Ou seja, o contato e a transferência de bens e ideias entre essas regiões era muito mais lento. O rei asteca Montezuma e seus colegas incas certamente não trocavam cartas entre si, e provavelmente nem sabiam da existência um do outro – diferentemente do imperador Carlos V e seu coleguinha turco Suleiman, o Magnífico, contemporâneos dos soberanos ameríndios.

Particularmente, acho esse tipo de perspectiva a respeito dos padrões da história algo fascinante e importante. Fatores biológicos, físicos e geográficos importam — embora não determinem a trama da história, certamente a influenciam. Vale a pena estudá-los, inclusive na escola — até porque eles deixam claro que a suposta superioridade racial teve muito pouco a ver com a vitória dos europeus sobre os demais povos do planeta no passado.

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