Os santos e o sábado

Reinaldo José Lopes

O leitor Diogo Molina Gois, de Itajubá (MG), assíduo visitante do blog e do site da Folha, enviou-me já faz um tempinho um e-mail com perguntas sobre dois temas teológicos candentes. Ele pergunta se é correto a maioria dos cristãos ter escolhido o domingo, e não o sábado, como seu dia santo, e também questiona a falta de fundamentos bíblicos para a canonização dos santos feita pela Igreja Católica (e também por muitas igrejas orientais, como os ortodoxos). Abaixo, tento responder as dúvidas do Diogo.

SÁBADO OU DOMINGO?

De fato, a versão bíblica dos Dez Mandamentos se refere ao sábado, o último dia da semana, e não ao primeiro (que não se chamava “domingo” porque essa palavra significa originalmente “dia do Senhor”, e “Senhor” nesse contexto quer dizer Jesus, não Deus Pai). Como diz o livro do Êxodo:

“Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias e farás todas as tuas obras. O sétimo dia, porém, é o sábado do Senhor, teu Deus”.

O Antigo Testamento dá duas razões distintas para celebrar o sábado como dia especial: a conclusão da Criação pela mão divina (o “repouso” do próprio Deus) e a libertação dos israelitas escravizados no Egito (os israelitas que tinham escravos eram obrigados a deixar que eles descansassem no sábado justamente por causa disso, e o mesmo descanso era concedido até aos animais).

Jesus, segundo a crença cristã, teria ressuscitado no primeiro dia da semana. Isso fez com que, logo nos primeiros séculos do cristianismo, reuniões para rememorar a morte e ressurreição de Jesus acontecessem no domingo (em grego, “hé kyriaké hemera”, ou “o dia do Senhor”). Não tardou para que alguns dos mais antigos teólogos cristãos argumentassem que a ressurreição marcava o “novo sábado”, já que correspondia tanto ao início de uma nova Criação — a do homem ressuscitado representado por Jesus — quanto o fim da maior das escravidões, a escravidão gerada pelo mal e pelo pecado.

Como escreve Justino Mártir (100-165 d.C.), nascido na atual Cisjordânia:

“Reunimo-nos todos no dia do sol [daí o inglês ‘Sunday’, por exemplo], porque é o primeiro dia (após o sábado dos judeus, mas também o primeiro dia), em que Deus, extraindo a matéria das trevas, criou o mundo e, nesse mesmo dia, Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dentre os mortos”.

Nem todos os cristãos seguem essa tradição — os adventistas, por exemplo, advogam que ainda se deve guardar o sábado.

SANTOS OFICIALIZADOS

A tradição de canonizar os santos é um pouco mais complicada de explicar. Originalmente o processo era muito mais informal do que hoje (até porque a organização das comunidades cristãs primitivas também era muito mais informal). Os santos “originais” eram basicamente os mártires, mortos pelo poder romano ou por outros grupos não cristãos por causa da sua fé em Jesus Cristo. A ideia era que morrer por Jesus garantia que o martirizado compartilhasse imediatamente da glória de Cristo ao lado de Deus Pai.

Após o martírio, a comunidade à qual o morto pertencia passava a venerá-lo em seu túmulo, em geral após autorização do bispo ou de uma assembleia de bispos (um sínodo) daquela região (o papa ainda não tinha papel decisivo nesse processo). Mais tarde, com o triunfo do cristianismo como religião oficial do Império Romano (e dos reinos bárbaros que o sucederam), do século 4º d.C. em diante, pessoas de vida religiosa considerada exemplar também passaram a ser veneradas como santas após sua morte.

Entre os cristãos ortodoxos, o processo de reconhecimento de santos continua mais ou menos no “modelo antigo”. Foi só na segunda metade da Idade Média que os papas assumiram a prerrogativa exclusiva de reconhecer santos no Ocidente, com a lenta evolução de um processo formal de canonização que assumiu grande parte de seus procedimentos atuais entre o século 18 e o começo do século 20.

É claro que a grande objeção dos cristãos protestantes a essa prática é o risco de os santos usurparem a posição de Deus e serem adorados como ele, algo que romperia um dos pontos básicos do monoteísmo. Ao definir o papel dos santos, no entanto, o Catecismo da Igreja Católica, compêndio oficial da doutrina do catolicismo, ressalta que eles são, em primeiro lugar, modelos de vida para o fiel, pessoas nas quais todo cristão pode se espelhar para buscar a santidade; e, em segundo lugar, intercessores, ou seja, capazes de interceder junto a Deus em favor dos fiéis. Em nenhum momento há a ideia de uma adoração direta dos santos (ou da Virgem Maria).

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E se você também tem perguntas sobre teoria da evolução, história das religiões e outros temas cobertos pelo blog, não seja tímido: mande sua dúvida para o e-mail darwinedeus@gmail.com (perguntas feitas nos comentários não serão registradas porque eu vou acabar me esquecendo delas, hehehe). Farei posts respondendo todas as que eu for humanamente capaz de elucidar.

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