Deus tá vendo?
Faz alguma diferença para o comportamento das pessoas imaginar que Deus está monitorando suas ações e é capaz de punir quem age de forma contrária às regras morais? Bem, já existe uma literatura científica considerável relatando tentativas de investigar essa questão experimentalmente, e um dos maiores estudos sobre o tema foi o mote desta reportagem recente que fiz para a edição impressa da Folha. A resposta curta é: as pessoas parecem, de fato, agir de um jeito um pouco mais honesto quando afirmam crer em divindades que monitoram e punem malfeitores — ao menos quando estão lidando com outras pessoas da mesma religião que elas. (Note que esse estudo recente não testou o que aconteceria se do outro lado estivessem pessoas de outra religião.)
Abaixo, tenho o prazer de compartilhar com o nobre leitor do blog as entrevistas na íntegra que fiz com dois dos autores da pesquisa.
Nossa primeira entrevistada é Emma Cohen, do Instituto de Antropologia Cognitiva e Evolutiva da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Perguntei a Emma sobre seu trabalho de campo no Brasil, que foi incorporado ao estudo, e também sobre a ideia de considerar a Virgem Maria como uma espécie de “divindade local” no estudo. Diga lá, Emma!
“Caro Reinaldo, obrigado por suas perguntas. Eu já tinha feito alguma pesquisa anteriormente em Soure [na ilha de Marajó, no Pará] — minha linha principal de estudo é sobre outro tema, e aí é uma história mais comprida. Não tínhamos uma razão especial para conduzir a presente pesquisa na comunidade de Pesqueiro, além do fato de que eu tinha alguns bons contatos lá e tínhamos facilidade de conseguir uma amostra aleatória de participantes da comunidade como um todo, além de poder conduzir o estudo na escola local, o que facilitou o acesso de todos os participantes.
Escolhemos ‘Nossa Senhora’ para o estudo não porque eu tivesse alguma razão forte ‘a priori’ para acreditar que ela seria vista como uma divindade “menor” (ou mais local) do que Deus (no sentido técnico relacionado à teoria testada), mas porque ela realmente era a única outra deidade que seria amplamente reconhecida pela população. Pode-se argumentar que eles a enxergam como mais ‘local’, tanto do ponto de vista regional como em termos do relacionamento pessoal do povo com ela (isto é, como alguém que intercede em favor deles). Além disso, nossos dados também mostraram que, de maneira geral, os participantes a consideravam como sistematicamente menos punitiva, onisciente e preocupada com a maneira como as pessoas tratam estranhos do que Deus. Os participantes relataram que pensavam mais em Deus e se preocupavam mais com o que Deus pensava deles.”
Consegui fazer uma entrevista mais completinha com Benjamin Grant Purzycki, antropólogo da Universidade da Colúmbia Britânica, que fica em Vancouver, no Canadá. Aí vai — minhas perguntas estão em negrito.
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Minha impressão depois de ler o artigo do sr., e por favor me corrija se eu estiver errado, é que a amostra usada na pesquisa é formada por pessoas que adoram tanto a um “Deus Grande” com preocupações morais e onisciência e deuses locais sem essas características. Nesse caso, o grupo do sr. não deveria estar tentando testar sua hipótese comparando grupos que só adoram deuses locais com outros que só adoram “Deuses Grandes”? Ou será que isso não é viável nos dias de hoje?
Eu já especulei em outros trabalhos que populações sem pelo menos alguma exposição à ideia de deidades que são moralmente preocupadas provavelmente não existem. Entretanto, se você examinar com cuidado as crenças dos Hadza (grupo africano) e dos taneses do interior [grupo natural de Tana, em Vanuatu, na Melanésia] por exemplo, verá que há alguma ambiguidade entre esses dois deuses, muitos papéis semelhantes entre eles, e também que eles são menos moralistas que os deuses dominantes do resto da amostra. Tentamos usar duas divindades de cada sociedade, mas algumas são mais obviamente moralistas do que outras.
Como católico brasileiro, devo dizer que é meio estranho ver a Virgem Maria listada como “divindade local” no artigo da pesquisa. Acho que sei o que quiseram dizer com isso e não acho propriamente ofensiva a ideia, mas será que esse é mesmo o melhor modelo do que um deus “pequeno” tradicional seria considerando que a Virgem é venerada como intercessora e mera “ajudante” de Jesus e de Deus Pai? Ou acham que esse tipo de detalhe teológico é irrelevante para o comportamento das pessoas comuns no dia-a-dia?
A questão não é tanto que a Virgem Maria seja um modelo de um “deus pequeno”. Tudo o que fizemos foi tentar encontrar deidades, espíritos etc. que fossem localmente conhecidos, importantes, mas menos moralistas, punitivos e oniscientes do que o deus mais moralista. Há muita variação de um lugar para o outro a respeito desses “deuses locais”. Mas você levanta uma questão ótima sobre a possível relevância do relacionamento entre as divindades locais e as moralistas. Infelizmente, como só temos oito grupos na amostragem, temos de considerar isso caso a caso.
O sr. acha que o efeito verificado nos experimentos é necessariamente válido apenas para dentro do mesmo grupo religioso, e não entre grupos religiosos? Afinal, há exemplos históricos de entidades políticas multiétnicas/multirreligiosas, como o Império Romano ou o Império Persa, nos quais havia um nível significativo de cooperação que atravessava as divisões religiosas.
É possível que sim. Mas, de novo, não conseguimos analisar isso diretamente com nossa amostragem. Em alguns locais não havia muita exposição a grupos de outras religiões, então tivemos de abandonar essa ideia para este projeto. Entretanto, é uma questão muito importante, que merece ser analisada com atenção.
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