Bíblia e mitologia

Reinaldo José Lopes

Esta é mais uma sessão da série “Darwin e Deus, responde”, gentil leitor! (Aliás, tem dúvidas sobre teoria da evolução, história/arqueologia das religiões e outros temas do blog? Não se acanhe: escreva pra este escriba no endereço darwinedeus@gmail.com. Só não esqueça de me dizer seu nome completo e, de preferência, cidade de origem, por gentileza). Desta vez, quem pergunta é o leitor Magella Pinho.

“Prezado Reinaldo Lopes,

Se o Gênesis é um livro de mitologias e o escritor do Evangelho de Lucas descreveu uma genealogia de Jesus que chega até Adão, o “primeiro homem”, então não seria a Bíblia toda ela um conjunto de livros de mitologias?”

Não, não seria — simplesmente porque classificar tudo como “livros de mitologias” equivale a “achatar” numa única massa indistinta a imensa diversidade literária, filosófica e teológica que caracteriza a Bíblia.

Lembre-se de que estamos falando não de um único livro, mas de uma pequena biblioteca de 77 (no caso da Bíblia católica) ou 66 (no caso das Escrituras protestantes) livros diferentes, que englobam textos escritos ao longo de um período de mais de mil anos de história, de 1000 a.C. a 100 d.C. (arredondando, claro).

É verdade que a Bíblia contém mitologia? Sem dúvida, isso é indiscutível – os paralelos entre as narrativas da Criação do mundo e do Dilúvio com os mitos de outras civilizações do antigo Oriente Próximo são claríssimos. Aliás, é muito provável que os autores anônimos do Gênesis tenham conscientemente criado uma versão subversiva monoteísta dos mitos pagãos que circulavam pelas nações vizinhas.

Agora, isso é só uma parte relativamente pequena do legado literário bíblico. As Escrituras também contêm lendas folclóricas heroicas (o livro dos Juízes), compêndios legislativos (Levítico), anais históricos (os livros dos Reis), pequenas novelas satíricas (Ester e Jonas), poesia de altíssimo nível (Salmos, Jó, Cântico dos Cânticos) e a singular mistura de biografia histórica e tratado teológico à qual demos o nome de Evangelhos.

Isso é um problema para quem acredita na inspiração divina da Bíblia? Depende. Se você acha que, a não ser que cada linha e vírgula do texto corresponda a um evento histórico que aconteceu exatamente daquela maneira a validade da narrativa bíblica vai para o saco, é claro que a visão exposta acima é problemática. Considere, no entanto, que em nenhum momento é a própria Bíblia que impõe essa visão. Quando o autor da Segunda Epístola a Timóteo diz…

“Desde a infância conheces as Sagradas Letras; elas têm o poder de comunicar-te a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus. Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra.”

… note que em nenhum momento ele diz que toda Escritura é útil como manual de história, biologia ou cosmologia. Desconfio que foi pensando nessa passagem que Galileu cunhou sua frase lapidar, até hoje insuperável como modelo para a relação entre fé e ciência, ao menos para quem é cristão: a Bíblia ensina como se vai para o céu, não como vão os céus.

Assim sendo, por que a mitologia não pode ser uma ferramenta “para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça”? Não é mais ou menos isso o que Jesus fazia com suas parábolas as quais, veja só você, eram uma forma de ficção?

Nesse contexto, é natural que cada autor bíblico falasse a língua de seu tempo, estivesse inserido na cultura de sua época e cometesse os erros factuais típicos de seu tempo. É normal que Lucas recuasse a genealogia de Jesus até Adão. Isso serve para inserir a vida de Jesus dentro da saga da humanidade inteira, ainda que factualmente seja problemático.

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