O estranho parto do Emecêtique

Reinaldo José Lopes

O ministério responsável pelo financiamento federal da ciência no país passou por uma reviravolta complicada com a chegada ao poder do governo interino de Michel Temer. Para quem não sabe, deixou de ser MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) e virou MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações; pronuncia-se “emecêtique”, daí o título do post). A mistura com o antigo Ministério das Comunicações é, de fato, estranha, e os cientistas do país todo andam bastante preocupados com o rumo do órgão, com razão.

Escrevi uma coluna não faz muito tempo para a edição impressa da Folha, criticando o descaso com que a ciência tem sido tratada nos últimos tempos, mas ressaltando que talvez a fusão de ministérios, por si só, não seja o problema central. Uma figura importantíssima da divulgação científica no país, o físico Ildeu Moreira, da UFRJ, leu minha coluna e fez algumas críticas ao enfoque que adotei. É com prazer que reproduzo abaixo a avaliação que ele me enviou. Jornalista tem uma dificuldade séria pra ouvir os outros às vezes, paradoxalmente, então estou tentando contornar isso. Você pode clicar no link da coluna acima ou então ler o texto dela que colei logo abaixo do comentário do Ildeu. Boa leitura!

Comentário do Ildeu

“Qual o recado que o colunista Reinaldo Lopes da Folha de São Paulo, que é um bom jornalista científico, quer nos dar? Que a gente desista de lutar contra a extinção do MCTI? A propósito de que? ‘O temor [extinção do MCTI] é legítimo, mas algo me diz que, além de se opor à fusão de ministérios, ou mesmo em vez de lutar contra ela, …’. A solução (rápida?) proposta: “forjar uma visão diferente do que o país pode ser”. Simples assim. Mas os fatos são mais complicados do que a imaginação científica ou a jornalística pretendem…

A crítica a governos anteriores no texto é correta, em especial sobre os erros mais recentes, mas não é respeitar os fatos ignorar as diferenças entre eles e não reconhecer que houve avanços significativos, em vários aspectos na C&T brasileira, nas últimas duas décadas. Não é só entre os políticos brasileiros (aí incluídos a elite dirigente nos 3 poderes) e entre os cientistas que é necessário atentar para os fatos (e não só o algo me diz) e alargar a imaginação política. A grande mídia brasileira também (os exemplos abundam). Os motivos, como tudo na sociedade, não são simples e nem existem soluções rápidas e simplificadoras. Pelo visto, a pouca consideração com os fatos e a imaginação política reduzida nos afeta a todos.”

E agora, o texto da minha coluna

Sem fatos nem imaginação

Não me admira nem um tiquinho que a ciência brasileira esteja à míngua, vendendo o almoço para pagar a janta, sinceramente. O motivo é simples. Gente muito melhor do que eu já resumiu o empreendimento científico como o namoro harmônico entre o respeito aos fatos e o exercício da imaginação, duas capacidades que até um sujeito munido de microscópio eletrônico teria dificuldade para encontrar na elite política brasileira de hoje.

Sim, eu sei que políticos podem ser primatas surpreendentemente imaginativos quando precisam esconder dólares (na Suíça ou na cueca), amantes e relacionamentos homossexuais. Uma passada de olhos pela biodiversidade de grandes símios que ora habita as selvas dos Três Poderes, no entanto, deixa claro que à imensa maioria deles falta o tipo mais essencial e ousado de imaginação, aquele que pode mudar radicalmente e para melhor a trajetória de um país (e, de preferência, a do mundo). De respeito aos fatos, então, não se vê sombra.

Só alguém profundamente sectário em matéria política não seria capaz de enxergar que esse problema antecede em muito o governo federal interino (ainda que pareça ter realizado a proeza de se agravar com ele). Um dos momentos mais constrangedores das gestões Dilma foi quando a presidente afastada classificou energias renováveis como “fantasia”, seguido de perto pela convicção inicial do ministério da Saúde de que o zika era um vírus mais brando que o da dengue.

A falta de imaginação (a incapacidade de cogitar que um vírus pouquíssimo conhecido poderia, sei lá, fazer alguma coisa inesperada…) e de respeito aos fatos (a indústria chinesa entupindo o mundo de painéis solares e turbinas eólicas já faz um tempinho) não só nos fizeram passar vergonha como nos presentearam com uma epidemia de microcefalia e deram nosso dinheiro para empreiteiro de hidrelétrica transformar em charuto de cem reais. Superlegal.

A ascensão de Temer e a criação do misterioso híbrido MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações; pronuncia-se “emecêtique”; fico imaginando o ministro Kassab com tique nervoso toda vez que ouço o acrônimo) deixou os pesquisadores brasileiros com medo de que as verbas federais para ciência, já reduzidas a um conta-gotas, fossem ainda mais represadas. O temor é legítimo, mas algo me diz que, além de se opor à fusão de ministérios, ou mesmo em vez de lutar contra ela, a principal batalha que a comunidade científica deveria estar travando envolve forjar uma visão diferente do que o país pode ser – e é uma visão que jamais terá chance de decolar sem a ciência.

Para ficar apenas no exemplo do zika e de outras doenças tropicais que hoje nos fazem arrancar os cabelos, é hora de transformar o limão numa limonada. Com a maior biodiversidade do planeta (inclusive no campo dos micróbios e dos vírus, para o bem e para o mal) e pessoal talentosíssimo nas áreas de genômica e bioquímica, é inconcebível que a gente não enxergue o potencial para criar uma indústria biotecnológica que vença os vírus aqui e lá fora e crie empregos qualificados.

Lampejos de que isso é possível estão na nossa cara – não passa uma semana sem que pesquisadores brasileiros elucidem com competência parte dos ardis do zika, por exemplo. Mas eles jamais ganharão massa crítica se os eleitores continuarem achando que entender de boi ou de bala é qualificação suficiente para uma cadeira na “House of Cunha”.

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