Beabá do Evangelho de Mateus
Está saindo a Coleção Folha Grandes Biografias no Cinema, e eis que o escriba que vos fala foi convidado para escrever três dos textos introdutórios dos livretos/DVDs! Dois deles são sobre grandes nomes da ciência — Marie Curie, a física vencedora do Nobel (por duas vezes em duas categorias diferentes!), e Alexander Graham Bell, o pai do telefone. E o terceiro é ninguém menos que Jesus de Nazaré. Para ser mais exato, o grande Cássio Starling Carlos, coordenador da coleção, convidou-me para falar do retrato de Jesus no Evangelho de Mateus, já que o filme apresentado na série é o clássico “Evangelho Segundo São Mateus”, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini.
Confiram abaixo meu texto que estará presente no livro, que chega às bancas no dia 28 deste mês. Serve como uma brevíssima introdução sobre a figura histórica de Cristo e sobre a composição do Evangelho de Mateus — pessoalmente, meu preferido do ponto de vista literário, uma verdadeira obra-prima das primeiras gerações cristãs.
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Pier Paolo Pasolini dizia que jamais passou pela sua cabeça produzir uma obra “historicamente correta” quando decidiu filmar “O Evangelho Segundo São Mateus”. Mesmo assim, ao menos num ponto o filme casa de modo quase perfeito com a maioria das reconstruções atuais da vida de Cristo feitas por historiadores: para o cineasta, Jesus e seus discípulos são, em primeiro lugar, camponeses de uma região remota e empobrecida.
A origem camponesa é uma das chaves para entender o Jesus histórico; sua condição de judeu é o outro ponto crucial. Tudo indica que a mensagem original do Nazareno estava totalmente centrada numa interpretação radical e escatológica (ou seja, que tinha como horizonte a crença no fim dos tempos e no Juízo Final) do judaísmo de seu tempo. Jesus desejava convencer seus conterrâneos israelitas – na prática, seu único público-alvo – de que Deus estava abrindo uma última janela de oportunidade de conversão antes de intervir na história humana de modo definitivo.
Não se trata de uma crença exclusiva do “movimento de Jesus”, como alguns especialistas costumam designar o grupo de seguidores de Cristo antes que eles se transformassem na Igreja cristã. Os livros mais tardios do Antigo Testamento, como o do profeta Daniel (composto mais ou menos um século e meio antes do nascimento do profeta de Nazaré), estão imbuídos de crenças parecidas, e tudo indica que a seita judaica de Qumran, responsável por produzir os famosos Manuscritos do Mar Morto, também se caracterizava por uma ardente expectativa escatológica.
Há uma associação relativamente clara entre a presença dessas visões teológicas sobre o fim dos tempos e o peso da ocupação estrangeira. O livro de Daniel faz referências apenas levemente veladas à perseguição antijudaica desencadeada por Antíoco 4º Epífanes, soberano do Império Selêucida sob cujo domínio estava a Terra Santa. Após um breve interlúdio de independência, o lar ancestral dos judeus foi novamente dominado por uma potência externa, o Império Romano. A resistência religiosa, portanto, era quase indissociável de suas implicações políticas: havia algo de muito errado com a ordem cósmica se invasores pagãos tinham se apossado da Cidade Santa de Jerusalém e oprimiam o povo de Israel.
Seria um erro, no entanto, considerar que os grupos judaicos que adotavam crenças escatológicas enxergavam apenas os inimigos externos como o problema. A elite da Judeia, e em especial as poucas linhagens aristocráticas que se revezavam para ocupar o cargo de sumo sacerdote do Templo de Jerusalém, optaram por uma estratégia de acomodação com o poder imperial romano. Isso explica, em parte, porque movimentos como a seita de Qumran e o grupo liderado por Jesus passaram a retratar a elite sacerdotal como essencialmente corrupta, chegando (no caso do Nazareno) a profetizar a destruição do próprio Templo.
Não se tratava de simples birra nacionalista: há indícios de que o sistema imperial de obtenção de impostos (basicamente um esquema “privatizado” ou “terceirizado”, no qual os cobradores conhecidos como publicanos deviam entregar uma porcentagem fixa à administração romana, mas não precisavam prestar contas do excedente que cobravam como seu lucro) tornou ainda mais difícil a sobrevivência dos camponeses da Palestina, os quais já precisavam lidar, para começo de conversa, com os desafios de produzir comida num ambiente relativamente marginal. Crescendo em Nazaré, um vilarejo de umas 200 almas da Galileia rural, Jesus provavelmente conhecia bem o impacto da nova ordem imperial sobre os judeus comuns (coincidência ou não, suas parábolas relatadas no Novo Testamento estão cheias de imagens derivadas da vida agrícola e do pagamento de dívidas).
Qual é a resposta a essa situação oferecida pela pregação de Jesus? Seria enganoso afirmar que a maioria dos pesquisadores dá uma resposta unificada a essa pergunta. O fato é que algumas de suas falas mais famosas – em Mateus, temos a emblemática “É mais fácil o camelo entrar pelo buraco da agulha do que o rico entrar no Reino de Deus” – colocam-no decididamente do lado dos mais pobres. Outra frase célebre, “Dai, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus”, frequentemente interpretada como uma exortação a obedecer as autoridades em tudo, desde que elas não tentem usurpar o lugar de Deus, também chegou a ser lida como politicamente subversiva por especialistas como os americanos Richard Horsley e Reza Aslan – já que tudo no Universo pertence a Deus, a frase seria um jeito sutil de afirmar que a única autoridade legítima, no fundo, é a divina.
De qualquer maneira, hoje são muito raros os especialistas na figura histórica de Cristo que o enxergam como defensor de uma insurreição armada contra as forças de Roma e seus aliados da elite judaica. Mais uma vez, a chave aqui é a perspectiva escatológica de muitos dos discursos de Jesus. Ele parece ter acreditado que o próprio Deus agiria para libertar seu povo e instaurar um reino perpétuo de justiça e paz – literalmente o “Reino de Deus” ou “Reino dos Céus”, uma das expressões mais usadas em sua pregação. Aos judeus fiéis caberia a missão de se preparar para a chegada iminente desse reino, adotando uma postura de perdão, partilha e pureza de coração – uma visão que, embora condenasse com severidade as pretensões políticas e religiosas da aliança entre a elite sacerdotal e Roma, era essencialmente não violenta.
MAIS JUDAICO OU ANTISSEMITA?
Outro consenso entre historiadores e exegetas do texto bíblico é o de que o Evangelho de Mateus é justamente o mais judaico dos quatro Evangelhos canônicos (ou seja, que constam do Novo Testamento bíblico), muito provavelmente escrito por um judeu-cristão e endereçado a uma comunidade de seguidores de Jesus com forte influência de seguidores do judaísmo. Isso significa que Mateus é o Evangelho cujo retrato de Cristo mais se aproxima do Jesus da história, portanto? Não exatamente – a começar pelo fato de que a atribuição tradicional da autoria da narrativa a um dos 12 apóstolos e testemunha ocular da vida do Nazareno, o ex-publicano Mateus ou Levi, é quase certamente incorreta, pois o autor do Evangelho parece ter utilizado fontes literárias já existentes (coisa que, supõe-se, não seria necessária para alguém que presenciou os fatos descritos no texto).
A análise comparativa das biografias canônicas de Jesus traz indicações fortes de que tanto o texto de Mateus quanto o de Lucas seriam, na verdade, Evangelhos de “segunda geração”, compostos entre os anos 80 e 90 do século 1º d.C. Ambos reproduzem, para começar, parte considerável da narrativa do sucinto Evangelho de Marcos, hoje visto de forma quase unânime como o mais antigo do conjunto, escrito nos anos 60 do primeiro século cristão. (Mateus e Lucas, cada um à sua maneira, deram retoques mais literários à narrativa menos polida de Marcos, além de acrescentar suas próprias perspectivas teológicas a essa fonte.)
Mateus compartilha ainda com Lucas (mas não com Marcos) um vasto conjunto de ditos memoráveis de Jesus – parábolas, aforismos, sermões – que parecem remontar a uma fonte literária mais antiga, hoje perdida. Essa coleção hipotética de frases de Jesus, designada com a letra Q (do alemão Quelle, ou “fonte”), também teria sido adaptada e rearranjada de forma diferente pelos dois evangelistas. Basta comparar as versões da oração do Pai Nosso em Mateus e em Lucas para ver algumas dessas diferenças (estão nos capítulos 6 e 11 dos respectivos Evangelhos, caso o leitor queira fazer esse exercício).
Mateus, a exemplo de Lucas, inicia sua narrativa com um “Evangelho da infância”, contando como Jesus foi concebido por intervenção direta do Espírito Santo divino e sem a participação de um pai humano (os outros dois evangelistas canônicos, Marcos e João, não abordam esse aspecto). Esse prólogo é precedido por uma genealogia que insere Jesus – de modo indireto, por meio de seu pai adotivo, José – na linhagem dos antigos reis de Israel, como Davi e Salomão, uma primeira pista da perspectiva judaica adotada pelo texto.
Esse ponto de vista é imensamente ampliado conforme o “Evangelho da infância” e o resto da narrativa se desenrolam. Para Mateus, Jesus é o novo Moisés, o responsável por revelar ao povo de Israel a plenitude dos preceitos divinos; por isso mesmo, assim como ocorre com Moisés, um rei perverso, Herodes (equivalente ao faraó do Êxodo), ameaça matar Jesus ainda bebê; numa inversão irônica da jornada do Êxodo, o menino e sua família se refugiam no Egito, de lá voltando apenas quando Herodes morre; e, tal como o grande profeta israelita, Jesus anuncia ao povo as diretrizes de Deus do alto de um monte, equivalente ao Sinai, durante o chamado Sermão da Montanha.
O Primeiro Evangelista é também o que mais faz recursos à citação de textos do Antigo Testamento como profecias que se cumprem com a vinda de Jesus ao mundo (e, o que é uma pista sobre a autoria do texto, faz tais citações a partir da versão grega das Escrituras, sugerindo que ele não nasceu na Palestina nem era falante nativo de aramaico, mas sim um judeu de língua grega). Em vez de contrariar frontalmente as disposições da lei religiosa judaica, o Jesus de Mateus propõe uma intensificação das exigências éticas da lei de Moisés, dizendo: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento”.
Num paradoxo com implicações históricas aterradoras, no entanto, Mateus é também o único Evangelho no qual, durante a cena do julgamento de Jesus, o povo judaico assume coletivamente (e de forma a transcender as barreiras das gerações) a culpa pela morte do Nazareno: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”, grita a multidão diante de Pilatos. Na época em que a narrativa foi escrita, a frase provavelmente estava ligada a disputas dentro das comunidades judaicas entre facções favoráveis e contrárias ao “movimento de Jesus”. Conforme os cristãos da Antiguidade se distanciam de vez de suas origens judaicas e ganham poder político e militar quando o cristianismo se torna a religião oficial de Roma, a frase acabaria sendo usada como pretexto para a perseguição aos judeus, gerando ondas de choque desastrosas que chegariam ao século 20 e além.
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