O dia da caça
Não faz muito tempo, tive o privilégio de escrever sobre uma das pesquisas mais trabalhosas e fascinantes da área de biodiversidade que já vi até hoje: um levantamento sobre os registros comerciais de venda de peles e couro de animais caçados em uma vasta região da Amazônia, ao longo de quase todo o século 20 (você pode conferir a reportagem aqui). Com base nos dados que levantaram, os autores do estudo defenderam uma opinião interessante e polêmica: está na hora de liberar a caça de subsistência — estritamente controlada, claro — na região amazônica. Confira abaixo os argumentos deles na íntegra.
Começamos com Carlos Peres, professor de Ecologia da Conservação da Universidade de East Anglia (Reino Unido).
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“A Lei de Fauna no Brasil data dos anos 1960 e está completamente obsoleta em relação às abordagens modernas de manejo de espécies cinegéticas (de aves e mamíferos e répteis caçados). A imensa diversidade taxonômica, e de tratos ecológicos e funcionais das espécies de vertebrados de médio a grande porte na Amazônia determina um amplo espectro de resiliência demográfica à pressão de caça entre as espécies tipicamente abatidas por caboclos, índios, e neocolonos na Amazônia.
Apesar disso, a lei brasileira praticamente trata todas as espécies por igual, e falha em reconhecer o potencial sócio-econômico deste recurso natural. A caça de subsistência valoriza o capital natural da floresta em pé, e pode perfeitamente ser manejada (e.g. com base comunitária ou institucional), ao invés de proibida terminantemente e até criminalizada. Por exemplo, temos espécies que, por sua baixíssima taxa reprodutiva, nunca podem ser caçadas; enquanto outras podem ser caçadas com restrições numéricas e temporais (em parte do ano); e ainda outras que podem ser caçadas o ano inteiro. A falta de diferenciação nas restrições de manejo entre as espécies faz com que, por um lado estamos estigmatizando os principais usuários da floresta em pé entre as populações locais para as quais o aproveitamento desta proteína animal é essencial, e por outro gerando práticas ilegais de caça comercial pois é impossível fiscalizar uma região de quase 5 milhões de quilômetros quadrados.”
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E agora confira o que diz André Antunes, da WCS Brasil.
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A falta de governança na Amazônia que poderia dificultar a fiscalização da caça se ela fosse regulamentada para fins exclusivos de subsistência na região é a mesma que vem fazendo vista grossa a todo o tipo de caça que ocorre desde a aplicação da Lei da Fauna e a mesma que viu a perda de aproximadamente 30% da Amazônia através do desmatamento desde então.
Cerca de metade da Amazônia brasileira é legalmente protegida, dentre os quais os Territórios Indígenas e Unidades de Conservação de Uso Sustentável perfazem juntos quase 2 milhões de km2. Essas áreas abrigam aproximadamente 250 mil indígenas e 1,5 milhão de ribeirinhos. Essa áreas devem garantir a conservação da biodiversidade e os modos de vida tradicionais das populações humanas, ou seja, o uso tradicional dos recursos naturais. A caça é sem dúvida uma das atividades mais antigas realizadas pelo homem na Amazônia, que está presente ali há pelo menos 10 mil anos, e não há qualquer evidência de extinção animal pela caça ou pesca desde então.
Atualmente, nas áreas protegidas aonde ocorrem práticas de manejo do pirarucu, um peixe extremamente vulnerável à pesca desordenada, os estoques populacionais de peixes vêm recuperando e as populações humanas locais vêm sendo empoderadas de tal forma que estas áreas passam a ser enfim implementadas. Uma vez participando ativamente do processo, esses atores locais coíbem tanto o desmatamento como o comércio de recursos naturais em larga escala por agentes externos, tornando mais eficaz as áreas protegidas para a conservação da biodiversidade. Atualmente a governança nas áreas protegidas está confiada em projeto efetivamente participativos, ou seja, incluindo os moradores locais das áreas protegidas no monitoramento e manejo de recursos naturais.
No entanto, quando a temática caça é considerada nos plano de manejo dessas áreas, em especial das reservas federais, o caráter legal ambíguo da caça (proibidas pelas leis estritamente ambientais e permitidas pelas leis socioambientais) dificulta ou mesmo impossibilita o avanço dos instrumentos promissores para a gestão participativa da fauna nas áreas protegidas, que poderiam reduzir os impactos da caça através da regulamentação da atividade para fins exclusivos de subsistência.
Uma das principais sugestões que fazemos é que a manutenção de refúgios (áreas sem caça por causa da inacessibilidade) atua como o principal mecanismo de resiliência da fauna à caça na Amazônia. Essas áreas mantém populações animais íntegras, que podem ainda repor por meio da migração os indivíduos caçados nas áreas mais próximas das comunidades. Nesse sentido, eu acrescento que além dos mecanismos, já expostos pelo Carlos, de restrição a algumas espécies mais vulneráveis, a períodos específicos, por exemplo durante os períodos reprodutivos, e as restrições no número de indivíduos abatidos, há também os mecanismos que regulamentam o acesso aos recursos naturais na escala espacial. Esse mecanismo, chamado de zoneamento dos recursos naturais, é incentivado pelas políticas socioambientais. Ele pode garantir áreas de refúgio e áreas de caça de subsistência de modo a contrabalancear a conservação da fauna e o uso tradicional que as pessoas fazem dela. Uma vez que a floresta é fragmentada ou desmatada esse mecanismo de resiliência natural da Amazônia à caça colapsa e a caça passa a exercer efeitos severos às populações animais.
A proibição da caça deprecia a cultura local ao impedir que práticas de manejo seculares sejam passadas através das gerações futuras. Acima de tudo, ela ameaça a segurança alimentar e nutricional das populações locais, pois a caça fornece parte crucial da proteína consumida por esses povos. As pessoas deveriam pensar por exemplo, que o maior agente do desmatamento da Amazônia é a pecuária, que produz a carne para a alimentação das pessoas que não vivem não floresta. É necessário ponderar o que representa um dia a dia em que a proteína deve ser obtida através de práticas tradicionais imprevisíveis como a caça e pesca em áreas muito distantes das facilidades dos supermercados ou frigoríficos.
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